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Algae Odyssey: Ana Kesselring no Museu Nacional de História Natural e da Ciência

No Laboratório de Química Analítica do Museu Nacional de História Natural e da Ciência, as algas e o corpo feminino são o assunto principal da nova exposição individual de Ana Kesselring. Com o título de Algae Odyssey, a artista apresenta uma série de esculturas em cerâmica e uma instalação fotográfica, expondo uma união primordial entre o corpo humano feminino e as espécies oceânicas.

A odisseia expande-se pelo laboratório, as obras surgem como um objeto de estudo, perfeitamente em sintonia com o lugar onde estão expostas: um museu de história natural que se dedica ao estudo e catalogação das inúmeras espécies existentes na natureza. As bancadas, gavetas e vitrines, servem para exibir as peças em cerâmica, e no centro do laboratório encontra-se Algae Odyssey (2022), a instalação fotográfica que dá nome à exposição.

Numa primeira bancada vemos Ophelia desmembrada (2022), composta por cinco peças de cerâmica vidrada que correspondem a diferentes partes de um corpo, com a sugestão de ser o corpo de Ofélia, uma personagem de Hamlet, escrito por William Shakespeare. Na obra de Shakespeare, Ofélia entra num estado de profunda tristeza quando o seu pai é assassinado pelo seu amante, Hamlet, acabando por sucumbir ao peso da vida e morrer muito jovem. Ofélia caiu ao rio quando colhia flores, afogando-se lentamente enquanto cantava[1]. O seu destino trágico elevou-a a um estatuto de figura mitológica, permanecendo no imaginário de inúmeros artistas. Aqui, Ana Kesselring apresenta-nos fragmentos do corpo de Ofélia, um corpo que carrega matéria orgânica, que se funde com os elementos naturais de um ambiente aquático.

Os corpos em Algae Odyssey surgem sempre em fragmentos, separados das restantes partes que os compõem; vemos pés, mãos, antebraços, pernas ou seios. Os corpos fragmentados, sugerem, por um lado, uma dissecação em cerâmica para um estudo da anatomia humana, expostos em bancadas para serem examinados. Por outro, as peças que se encontram guardadas em vitrines, lembram-nos de relíquias religiosas, como se fossem partes do corpo de uma personagem sagrada. O próprio título de algumas peças sugere exatamente a representação de relicários; em Relicário 1 (2019) a artista constrói uma espécie de torre com uma mão no seu cimo. Nesta mesma vitrine, vemos também um pé e um seio; todas as três peças são de cor branca, mas estão cobertas com rastos de tinta azul, um azul celestial que simbolicamente está ligado à transcendência religiosa e espiritual.[2] A narrativa de Kesselring acerca do corpo constrói-se tanto sobre a ciência como pela espiritualidade, tanto pelo concreto como pelo imaterial. A isto, acrescenta-se a fusão entre o corpo e a matéria orgânica, que está presente em quase todas as peças de cerâmica. Em Costas marítimas (2022) ou Maminha 2 (2022) a artista molda pele e músculo, mas, também, organismos vivos como moluscos de conchas ou sinuosidades que se assemelham a corais.

No centro do laboratório vemos a instalação Algae Odyssey, composta por dez fotografias impressas sobre um tecido translúcido. Suspensas ao teto e alinhadas, as imagens vão criando sobreposições num tecido transparente que ofusca, mas que deixa ver. O vermelho e o rosa inundam as primeiras três fotografias onde as algas vermelhas são protagonistas. Sobre um corpo, fundem-se com a pele que lhes toca, e à medida que nos movemos pelas imagens os pormenores aumentam, realçando as texturas líquidas e sinuosidades das algas. A vista macro estabelece-se e o negro invade a imagem-tecido; surgem cabelos e um corpo em movimento entre algas verdes e vermelhas. Nas últimas imagens o corpo feminino envolto em algas torna-se nítido. Fria e pálida, a mulher que vemos tem o corpo submerso em água, apenas com parte do rosto de fora, remetendo para uma representação clássica de Ofélia, como a de John Everett Millais.

Ana Kesselring parece salientar a memória primordial que existe entre os corpos e o oceano, recuperando a ligação entre o ventre e as remotas águas que um dia originaram a vida. A artista resgata o universo de um corpo em metamorfose, que pertenceu à água, que viveu no mar ou num rio, e que aqui pode ser estudado pelo espetador. Numa atmosfera mítica e misteriosa, Algae Odyssey deixa-nos também uma nota sobre as algas vermelhas que tanto vemos em exposição: das espécies mais antigas do planeta, contribuíram para a origem da vida por serem responsáveis por grande parte do oxigénio terrestre[3].

Algae Odyssey de Ana Kesselring está patente no Museu Nacional de História Natural e da Ciência até ao dia 2 de outubro de 2022.

 

 

 

[1] TATE. The story of ophelia – look closer. Disponível em: https://www.tate.org.uk/art/artworks/millais-ophelia-n01506/story-ophelia

[2] The book of symbols. (2010). Köln; London: Taschen. pág. 650.

[3] Informação disponível na folha de sala da exposição Algae Odyssey.

Laurinda Marques (Portimão, 1996) é licenciada em Arte Multimédia - Audiovisuais pela Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Estagiou na Videoteca do Arquivo Municipal de Lisboa onde colaborou com o projeto TRAÇA na digitalização de filmes de família em formato de película. Recentemente terminou a Pós-graduação em Curadoria de Arte na NOVA/FCSH onde fez parte do coletivo de curadores responsáveis pela exposição "Na margem da paisagem vem o mundo" e começou a colaborar com a revista Umbigo.

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