Senso Comum: Entrevista a Céu Guarda na The Cave Photography
No âmbito da exposição individual de Céu Guarda, Senso Comum, patente até 27 de junho na The Cave Photography, entrevistamos a fotógrafa na montagem do seu mais recente projeto expositivo, inserido na 2ª edição da Bienal de Fotografia do Porto, sob o mote O que Acontece com o Mundo Acontece Connosco.
Ana Martins – Senso Comum parte da “apropriação de pessoas e lugares através da fotografia repensada a partir da prática arquivística […], procurando estabelecer sucessivas camadas de referenciação entre imagens, num processo de ligação e libertação da imagem fotográfica como lugar de interação”. Como surgiu o projeto e de que modo refletiu sobre a “prática arquivística” pelo meio da fotografia?
Céu Guarda – Quando me fizeram o convite em dezembro, durante a pandemia, percebi que não iria conseguir fazer um projeto novo, porque iríamos estar confinados e três meses não seriam necessários para o executar. Pensei em trabalhar segundo o meu arquivo de uma maneira bastante livre e não retrospetiva. Selecionei alguns dos meus momentos fotográficos ao longo de quatro décadas, ligando-os ao tema desta Bienal, porque O que Acontece com o Mundo Acontece Connosco era algo demasiado forte para me conseguir libertar.
Sou uma fotografa documental, as minhas imagens são todas carregadas de significado, nunca me afeiçoo a um lado mais formal, portanto, fui à procura de significados que se pudessem relacionar com o tema. Esta exposição obrigou-me a repensar o meu trabalho, ou seja, como eu olhei o mundo, como ele se olha e como as pessoas o olham. A fotografia serve para nos relacionarmos com imensas coisas, como é que pensamos e refletimos sobre o mundo através das imagens. O que eu tentei fazer foi relacionar com esse mundo algumas das pessoas que passaram por mim. Comecei a criar interações entre aquilo que são os lugares e as pessoas de passagem, com os de vivência, como se fosse um jogo.
AM – Em relação ao projeto expositivo e ainda referindo a “prática arquivística” enquanto processo de organizar, documentar e conservar memórias, como pensou a materialização do projeto fotográfico no espaço, tendo em conta o desenho, o ambiente e a forma?
CG – Inicialmente pensei como poderia intervir no espaço com o triplo das imagens. No entanto, tive de selecionar segundo uma relação entre elas e o espectador numa lógica de jogo, ou seja, de ligar as pessoas aos lugares e vice-versa. Imaginei que numa parte do percurso os visitantes pudessem criar a sua própria exposição, mais precisamente numa mesa com várias fotografias, que iria servir como lugar de interação material, onde pudéssemos mudar tudo segundo a ordem que desejássemos.
AM – O título, Senso Comum, remete para um conjunto de opiniões ou ideias comummente aceites num determinado tempo e geografia. Como surgiu e de que forma estabeleceu um paralelismo com a fotografia?
CG – O senso comum é um termo que se discute desde a antiguidade. É algo que nos é inerente e com o qual nós somos criados, para mais tarde alcançarmos um sentido crítico da vida. Quando eu escolhi este título, foi na reflexão acerca daquilo que determina a ligação das pessoas com o mundo e como é difícil fazer um afastamento desse senso comum. Continuamos a viver em ilhas, sem compreendermos as do outro, porque vivemos no senso comum, determinado pela nossa cultura. Crescemos naquilo que nos é dito, como uma verdade, e depois descobrimos que afinal há várias realidades. Maior parte das pessoas não quer ter um pensamento, porque é muito difícil questionar e compreender o ponto de vista dos outros. Esta exposição é uma proposta, para as pessoas refletirem sobre o que se passa à sua volta, através da fotografia.
AM – Qual é a sua relação com as fotografias que irão figurar a exposição?
CG – Estas fotografias são quatro décadas da minha ligação com a imagem. O meu ponto de partida foi o processo de arquivo, de olhar e voltar a pensar onde e com quem é que estive, como é que interpretei esses momentos da minha vida com os outros e os lugares por onde passei. Há coisas que estão muito presentes e há outras que já não estão da mesma maneira, ou imagens de que não me lembro, porque nunca as vi. Estou a vê-las pela primeira vez e isso é algo que me está a dar muito prazer, porque perceber como olhei para as coisas e como as olho agora permite-me pensar como irei trabalhar daqui para a frente.
AM – Qual é o lugar deste projeto fotográfico no pensamento contemporâneo, no sentido em que atualmente todos nós vamos criando intuitivamente um arquivo de imagens digital extenso e à escala global?
CG – Os milhões de imagens que se estão a fazer vão-se perder. Não sei se será necessário haver um arquivo para o futuro e se os movimentos contemporâneos estão a caminhar nesse sentido. Neste início de século XXI, há um trabalho a nível da paisagem, aquilo a que chamamos de new topographics, descrição de sítios, mas onde as pessoas não têm lugar. Creio que a importância das pessoas na imagem se perdeu na contemporaneidade e para esse arquivo do futuro. E há também a questão do arquivo digital, que não sei se será pior que os negativos, que têm uma presença física. Não sei o que vai acontecer, mas eles existem e é muito mais fácil perceber o que aconteceu há trinta anos do que vai ser possível no futuro com o digital. Trabalho no ensino e os discentes do secundário estão muito mais interessados na película, no processo material e em tocar e ver a materialização daquilo que fazem. Curiosamente, dizia-se há uns anos que a película iria estar obsoleta e nos dez anos que estou no ensino vejo o contrário a acontecer.