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Valter Ventura na Kubikgallery

Apontar, disparar, capturar, tirar. Palavras com duplo significado que se relacionam com dois universos aparentemente diferentes mas cujos movimentos e ações, quando observados, revelam-se surpreendentemente semelhantes. A caça e a fotografia partilham um mesmo vocabulário que se traduz em dois discursos distintos. Ora, como Wittgenstein identificou, há inúmeros jogos de linguagem e é a atividade, ou o uso, que dá significação às palavras, às frases, aos diálogos. A linguagem situa-se cultural, social e historicamente, dependente do contexto de enunciação e da situação em que é aplicada, não podendo ser analisada e compreendida isoladamente.

Ao observar o ato de caçar e o de fotografar denota-se como principal diferença que o primeiro opera na ordem do físico e o segundo na do visual. Porém, ambos assumem uma decisão sobre o tempo e o espaço em que ocorrem e procuram apreender e guardar, para si, algo do real. No caso do fotógrafo, este recorre à câmara, a sua arma, para selecionar um fragmento do mundo visível para o qual aponta, enquadra, foca e sobre o qual dispara, regista e captura. Esse referente é, na Câmara Clara (1980), apelado por Roland Barthes de spectrum. Evocando ainda o autor, a fotografia contém, pois, um elemento que constitui algo de objetivo, um studium, mas também qualquer coisa da ordem do subjetivo, um punctum. É esse último elemento, um determinado pormenor, um detalhe, diferente, único a cada observador que captura este, o seu olhar e a sua atenção. Assim, pode compreender-se que a fotografia tem uma dupla capacidade de apreensão. Por tudo isto, a prática fotográfica, ao contrário da caça, não existe somente no mundo palpável e físico, mas, pelo contrário, estende-se e habita as várias esferas e universos, tanto reais como ficcionais, psicológicos ou mesmo espirituais. A fotografia existe nas dimensões onde é criada e recebida, concebida e experienciada, de certo modo ultrapassando condições e limitações de efemeridade e prolongando-se temporal e espacialmente.

A obra de Valter Ventura (Lisboa, 1979) apresenta-se precisamente plural, com uma multiplicidade de relações, significações e possibilidades interpretativas. O artista produz fotografias e expõe-nas, lado a lado, em composições tão equilibradas quanto dinâmicas, não necessariamente narrativas, mas através das quais as imagens estabelecem, entre si, contínuos diálogos, ligações e fluxos de informação visual e conceptual. O seu trabalho apresenta uma nítida singularidade imagética e visual através de qualidades técnica e estética admiráveis. Conquista o público e imprime-se na sua memória, algo que se concretiza, desta vez, na Kubikgallery, com uma bela e inédita exposição inaugurada no dia 24 de novembro e passível de ser visitada até 19 de janeiro de 2019.

Foi há anos atrás que Valter Ventura se deparou com a correlação entre a caça e a fotografia, que lhe preside desde a concepção desta última, por volta de 1839. Conta, nomeadamente, que a primeira máquina portátil de captura de registos do real, criada por Étienne-Jules Marey, foi apelada de “espingarda fotográfica”. A ligação entre as duas áreas, por ser tão inesperada quanto, de seguida, evidente, fascinou-o e instigou a sua reflexão e estudo. Em 2015, ao participar nas Residências Artísticas do Alvito, Valter encontrou a possibilidade de se aproximar e experienciar o universo rural e agrícola com tudo o que este comporta, desde a colheita à caça de espécies animais. Nessa zona, numa carreira de tiro, encontrou fragmentos de pratos que tinham servido de ponto de disparo de atividades de tiro. Valter recolheu os objetos, retirando-os do seu contexto e observou-os enquanto elementos isolados, identificando as suas potencialidades estéticas e plásticas. Reconstruiu os 12 discos e, depois, fotografou-os, o que resultou na composição fotográfica Snapshot, palavra que, originalmente, significava “tiro instintivo”, caso de mais uma expressão de caça adoptada pela esfera da fotografia.

A participação e estadia em Alvito confluíram, pois, na oportunidade ideal para o artista aprofundar a compreensão teórica e prática da questão que o havia inquietado. Nesse sentido, desenvolveu uma particular e complexa pesquisa que se reflete numa igualmente única e densa produção artística que o tem ocupado até aos dias de hoje, concretizada, sempre, fotograficamente. Tal prática artística é, assim, o objecto de estudo, a técnica problematizada e, simultaneamente, a própria ferramenta de análise. A fotografia é, por sinal, a forma de produção imagética que conduziu Valter a entrar no universo da arte. As câmaras cativaram-no e a sua capacidade de com elas trabalhar e criar revelou-se inata, o que é notório na sua obra e refletido no modo como o seu percurso tem vindo a ser reconhecido e apreciado no presente cenário da fotografia portuguesa.

A atual exposição de Valter Ventura intitula-se Compêndio de Observações Fotográficas – e outras anotações sobre coisas que parecem ser mas não são, ocasião onde se encontra exposta Snapshot e várias outras peças do seu mais recente trabalho. A ocasião é acompanhada por uma obra de Sérgio Fernandes, instalada no Kubikulo, área de intervenção que ganha novas expressões a par das exposições patentes na galeria. Os espaços e os objetos dos artistas dialogam e aguardam por fazê-lo, também, com o público que as receber.

Constança Babo (Porto, 1992) é doutorada em Arte dos Media e Comunicação pela Universidade Lusófona. Tem como área de investigação as artes dos novos media e a curadoria. É mestre em Estudos Artísticos - Teoria e Crítica de Arte, pela Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, e licenciada em Artes Visuais – Fotografia, pela Escola Superior Artística do Porto. Tem publicado artigos científicos e textos críticos. Foi research fellow no projeto internacional Beyond Matter, no Zentrum für Kunst und Medien Karlsruhe, e esteve como investigadora na Tallinn University, no projeto MODINA.

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