Alexandre Farto – Vhils, como é (re)conhecido – continua a mostrar talento. Recentemente, venceu o prémio Personalidade do Ano Martha de la Cal e agora divide-se entre o Barreiro e Aberdeen, Hong Kong. Na cidade asiática, continua a criar “rostos que surgem da matéria que a cidade vai expelindo”.
Numa entrevista em 2014, disseste que não conseguias dar um nome àquilo que fazes, mas recentemente, apelidaram o teu trabalho de "picotagem". Concordas e gostas deste nome ou manténs a tua afirmação?
Picotagem é um bocadinho aquilo que se fazia na escola, não é? Não sei se é o nome certo. É um misto entre pintura e escultura, é difícil definir.
Como é que surgiu a ideia daquilo que constróis?
A base é sempre a mesma e o conceito, que é transversal a todos os media de trabalho, é o de destruir a camada da superfície para revelar o que está dentro. Só nisso já há uma metáfora. Apesar de inicialmente partir de uma imagem que já está pintada ou desenhada, torna-se uma escultura quando é escavada.
The Mills, Hong Kong, 2016 (fotografia: Alexandre Farto)
Mas tens outras coisas...
Tenho, mas já sai fora das coisas escavadas. A ideia é sempre a mesma.
Os posters, como fazes?
É uma coisa comum a quase todas as cidades, que é outra premissa do trabalho: ir buscar os pontos comuns.
Consegues sempre arranjar algum?
Sim. Normalmente é publicidade ilegal que se vai acumulando nas paredes e eu vou arrancando, pinto de branco e escavo. É quase um trabalho de arqueologia de imagens gráficas da cidade nos últimos dois ou três anos.
Hong Kong, 2016 (fotografia: Pando Lucas)
Achas que é uma característica que marca Hong Kong?
Sim, mas também tens muito em Lisboa. Isto também diz muito sobre a maneira como as cidades se tocam, apesar de termos culturas completamente diferentes. É sobre esses pontos de ligação que também me interessa refletir, mas também questionar outras coisas. Estamos num momento único de diluição que também me interessa captar.
Começaste com o grafitti, a pintar comboios, entre outras coisas. O público que só conhece o teu trabalho de hoje em dia, dificilmente te associa ao mundo do grafitti.
Ainda bem. Nunca deixei de fazer grafitti, mas são coisas completamente diferentes. A única coisa que acho que interliga as duas é o meu background, foi quase a minha escola. O grafitti representa a minha emancipação pessoal, mas também sempre foi uma arte muito discriminada. No entanto, isso nem sempre é mau, porque funciona como catalisador para desenvolveres melhor o teu trabalho. Tem é esta característica de ser muito condenado, visto como algo que destrói e não constrói, que não cria e que desvaloriza o espaço público. O meu trabalho é exatamente isso e vem do próprio grafitti e dessa luta interna pessoal: destruir para criar.
De há uns anos para cá, surgiram em Lisboa e alguns outros locais de Portugal, uma série de pinturas e outros trabalhos em zonas urbanas. Achas que a cidade está mais aberta a este tipo de intervenções?
Tiveste um grande movimento de muitos artistas que vinham do grafitti e que fizeram estas peças – há quem lhes chame de pós-grafitti ou street art, mas eu sou um bocado contra nomes, porque acho que mete as pessoas em caixas, que as rotula e fica difícil de poderem fazer outras coisas. Estes artistas fazem coisas incríveis, tanto em telas, como pinturas. Cada um deles tem backgrounds diferentes. Este movimento começou nos anos 2000, quando alguns artistas começaram a utilizar a rua, cansaram-se do grafitti. Vários perceberam que no espaço público é possível ter um certo contacto com as pessoas, consegues ligar-te e relacionar-te, sendo uma forma de contribuíres para um diálogo no espaço público.
É portanto positivo?
Sem dúvida que Lisboa ficou a ganhar muito mais com isso, não só ao nível de oferta cultural – já começas a ter pessoas que vão a Lisboa especificamente para isso – como de acessibilidade de arte à população e ao nível económico. Se formos contabilizar todas as notícias, em media internacionais, como publicidade e forma de comunicar Lisboa lá fora, estamos a falar de um retorno brutal. Acho que a Câmara Municipal de Lisboa conseguiu ver o potencial disso mesmo, até porque criou um departamento dedicado à arte urbana, que cria a ponte entre os artistas e a cidade. É um projeto-piloto e não acredito que muitas cidades o façam. Sei que Filadélfia também tem. É interessante, na medida em que conseguiram perceber que há uma série de artistas que quer contribuir para a cidade. Isto também veio minimizar os efeitos de vandalismo que tínhamos. É um bocadinho passar dos espaços interiores dos museus, dos cafés, das galerias, para o exterior. É passar para a rua, deixar de fazer com que a rua seja um espaço inerte. Lisboa, especificamente, tem um espaço público importante. As pessoas são muito mais introspetivas e preferem ambientes controlados. Nesse aspeto, a rua tinha uma carga muito mais importante há 50 anos e tudo isso se foi diluindo. Acho que estes movimentos mais recentes são importantes para nos fazer olhar para a rua de forma diferente.
Comparando Hong Kong e Lisboa: Aqui (Hong Kong), a rua ainda tem mais essa componente de passagem. Mais pessoas, mais trânsito, mais caos. O que te fez abrir o estúdio aqui?
Primeiro, foi o convite da Fundação de Arte Contemporânea de Hong Kong (HOCA). E depois foi o facto de já cá ter vindo e a cidade me estimular muito visualmente. Cá, conseguia dar o salto nos meus trabalhos, o que se reflete no corpo de trabalho que fiz na exposição em Março. Estive quase um ano a fazer a residência.
Através de convite da Fundação?
Sim, decidi ficar durante um ano e depois expor 50 trabalhos. Vou ficar mais um ano e depois vamos ver. Isto funciona um bocado como refúgio, estou um bocado fora do horário de trabalho da Europa e dos EUA.
Tram, Hong Kong, 2016 (fotografia: Fernando Guerra)
Trabalhas a tempo inteiro como Vhils ou como Alexandre?
É difícil dividir essas coisas, até porque o escritório é na cabeça e estás sempre a processar e a pensar, não se consegue distinguir.
Tiveste projetos no Dubai, no México e noutros locais. Em que consistiram?
No México foram cinco paredes em várias cidades, três delas na cidade do México. Foram projetos específicos com outros artistas e comunidades. Mas são sítios onde não fico muito tempo.
A efemeridade é um aspeto constantemente presente no teu trabalho, mais que não seja pelo facto de várias das tuas obras serem feitas em locais que vão ser destruídos ou demolidos. Acabam por desaparecer. Porquê obras efémeras e não permanentes?
A arte sempre teve muito medo. A partir do momento em que nasce a fotografia e a arte no espaço público, que não tem necessidade de ser vendida, a efemeridade deixou de ser um problema porque não há mercado e, por isso, deixa de haver preocupação delas durarem para sempre. Antigamente faziam-se esculturas e peças para durarem milhares de anos, mas porque também não havia forma de as registar. Acho que a efemeridade é algo que aceito e de que gosto, porque faz com que o trabalho evolua e que se vá mudando, tornando-o mais humano.
Faz com que possas errar e estar sempre a mudar.
Sim, e nada dura para sempre, mesmo aquilo que não foi feito para ser efémero. É muito mais interessante, enquanto ser humano, poder ver o nascimento e a morte da obra, do que propriamente uma coisa que nunca muda até morreres. Tornar a arte suscetível de alteração é a parte interessante e que a torna mais próxima de nós, mais humana.
Hong Kong é uma cidade que, à primeira vista, é super-moderna. No entanto, quem a conhece, sabe que tem zonas bastante degradadas também. Costumas tirar partido disso?
Sim, o meu trabalho explora muito isso. As minhas peças com esferovite falam um bocado disso. São peças inversas às de escavação e que só consegues ver com a incidência da luz. A ideia é inspirada nas cidades e uma delas foi especificamente feita para Hong Kong. Tem que ver com o facto de muitas vezes se olhar simplesmente para o topo de um edifício e muitas vezes nos esquecermos das ruas e das sombras que os circundam.
Qual foi o feedback da tua exposição aqui? Existe um bocado a noção de que o grafitti e a arte urbana é vista com maus olhos.
O feedback foi muito positivo, mas também foi complicado começar o trabalho. No entanto, muitas das pessoas ficaram muito surpreendidas com os trabalhos da exposição.
Sentes que conseguiste fazer todas aquelas obras para a exposição de cá porque vês e interpretas a cidade com olhos de estrangeiro?
Sem dúvida. É a mesma coisa de viver toda a vida em Lisboa e só conseguires conhecer a tua cidade quando vem alguém de fora. Apesar de tentar ficar cá bastante tempo antes da exposição e tentar não ir pelo cliché, isso tudo vem ao de cima. A reflexão sobre a cidade é sempre diferente do ponto de vista do artista.
Uma das instalações da exposição é feita com néons. Se tivesses que descrever a cidade numa palavra, seria "néons"?
Não. Essa peça foi muito inspirada nas referências visuais anteriores que eu tinha de Hong Kong. Acho que muito mais do que isso, é estímulo visual. Foi aquilo que me fez fazer a exposição, desde a publicidade aos néons, das portas, aos edifícios. Cada sala da exposição foi organizada de acordo com um elemento de inspiração da cidade.
Pier 4, Hong Kong, 2016 (fotografia: Stanley Chen)
Fizeste mais alguma preparação?
Sim, fiz mais de 40 entrevistas e falei com pessoas de todas as idades e de todos os backgrounds. Estão a ver-se mudanças interessantes aqui na cidade que são interessantes de refletir sobre.
Sentes que continua a ser necessário reinventar as cidades?
Sinto que é preciso continuar a refletir sobre elas, principalmente – que é uma coisa que o meu trabalho faz muito – perceber que em qualquer criação, há sempre destruição. Seja um poeta que escreve um dos melhores poemas de sempre, mas que destrói a paz de uma página em branco... A partir do momento em que ganhamos consciência de que qualquer criação destrói, conseguimos criar de uma forma muito mais consciente.
Mas isso num sentido fatalista?
Não, mais de consciencialização. O modelo de desenvolvimento acontece de forma tão acelerada, que não nos permite perceber o valor do que lá estava. Muitas vezes é fácil seguirmos em frente e só vários anos depois se dá valor àquilo que se destruiu em prol do desenvolvimento. Acho que é essa reflexão que é importante e que está presente no trabalho. Vem muito da destruição, mas destrói, criando rostos que surgem da matéria que a cidade vai expelindo.