MÚSICA

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O Festival Tremor, Ponta Delgada, começa hoje. Decidimos ir falar com um dos seus organizadores, António Pedro Lopes, e também nós, deste lado de cá, abrir uma janela para o Atlântico. A âncora lançámo-la no Festival, mas a partir daqui quisemos saber um pouco mais – como cresceu, as principais apostas e sinergias criadas, mas também afagar estômago e sobretudo o muito caminho que ainda falta percorrer para a afirmação de uma cidade-ilha-arquipélago para lá dos habituais clihés turísticos.

Qual a necessidade de fazer um festival como o Tremor?

Começámos há dois anos, numa altura em que Ponta Delgada se encontrava em falência. Por exemplo, o comércio tradicional fechava as portas e a cidade tornava-se um fantasma. Às três da tarde não se via ninguém. Nós, eu e o Luís responsável pela YUZIN - Agenda Cultural, somos melómanos e já tínhamos colaborado anteriormente. Decidimo-nos juntar para dar resposta à seguinte pergunta: como podemos reverter esta situação? E em quatro meses montámos um festival de um dia, de 24 horas, com cerca de 20 bandas exclusivamente portuguesas. Tentámos criar uma dinâmica de ocupação de espaços muito diferenciados entre si, mais institucionais, mais informais, improváveis; da loja, ao café, da livraria à galeria de arte contemporânea, ao hostel, a um grande teatro. O objetivo passa por incutir outro tipo de dinâmicas que provocassem encontros. Esta palavra é muito importante e chave nisto – encontro. O centro histórico de Ponta Delgada, a cidade onde nasci, que foi a primeira janela para o mundo, o lugar dos cafés, onde se lê o jornal, o cinema passa a ser um deserto, como tal era urgente pensar em conteúdos, que não do domínio arquitetónico, mas culturais, que criasse uma ideia de vida. Dar vida àquele centro, que as pessoas se encontrassem e que de alguma forma se virasse do avesso.

Desde essa primeira edição de 2014, o Tremor cresceu e entretanto já vamos na terceira. Uma das ligações que se mantém é com a Lovers & Lollypops, como surgiu?

Começa com uma conversa de café, comigo a escrevinhar umas coisas numa toalha de mesa. Uma semana depois reunimo-nos com eles. Não nos conhecíamos, muito bem, mas desde cedo eles simpatizaram com a ideia. Neste momento somos amigos, colaboramos em conjunto, sofremos em conjunto. É uma parceria que acontece tanto a nível de produção, como de promoção. Somos quatro a trabalhar nisto, eu, o Luís, o Márcio Laranjeira, e o Fúa, os dois últimos da Lovers. Estamos um ano a pensar como se arquiteta esta experiência, que seja uma experiência da curiosidade, que seja eclética do ponto de vista musical, ou seja não especializada num determinado segmento e que de alguma forma motive uma cena local, que tente também um intercâmbio com o que vem de fora.

Tremor 5

Este ano nota-se talvez uma aposta mais forte em nomes mais ao menos conhecidos, destacaríamos Bonnie “Prince” Billy, Dan Deacon, Black Mountain. Quais as grandes alterações e quais os critérios subjacentes à programação deste ano?

Somos um pouco suicidários em termos de programação, mas contraditoriamente também temos um grande fascínio pelo sentido de comunidade. Isso ainda se vai sentido no meio da música, uma vez que palavra passa palavra. Por exemplo, Bonnie “Prince” Billy aparece através dos Bitchin Bajas, que tocaram o ano passado e que lhes falou dum conjunto de ilhas no meio do Atlântico, que era impreterível conhecer, o Dan Deacon pelo mesmo motivo, pelo desejo dele em conhecer os Açores, mas também por pensarmos que o lado festivo e celebratório das atuações ao vivo dele tinha todo o cabimento num festival como o Tremor. Paus por ser uma estreia e por ser um desejo desde o primeiro ano, com um novo trabalho (Mitra) e também por isso é um privilégio mostrá-lo em primeira mão, os Capitão Fausto por terem essa capacidade em chegar a vários tipos de públicos, a aposta em artistas açorianos, que este ano são 14, há um segmento dedicado ao hip-hop, outro ao cancioneiro regional com o Zeca Medeiros, com o Lucas e o novo álbum (Terra do Corpo). Há vários álbuns novos na edição deste ano, e isso é uma sorte – os Black Mountain, a Julian Barwick, os Bitchin Bajas, MEDEIROS/LUCAS, Paus, Capitão Fausto. Mas para além desta feliz coincidência ainda há dois aspetos que para nós são extremamente importantes, por um lado a criação de parcerias com festivais parceiros, o Le Guess Who? e o Liverpool International Festival Of Psychedelia, que terão um palco com curadoria própria. Há também uma parceria com o Walk and Talk, um festival de arte pública, com uma artista que irá criar um mural, a Sonja.

Para além da relação com a Lovers estão abertos a outro tipo de parcerias?

Claro que sim. Em parte o Bonnie “Prince” Billy vem também pela relação estreita que este mantém com a ZDB e com o Sérgio Hydalgo. O Thurston Moore também esteve em S. Miguel através de uma ligação com o Sérgio e do Walk & Talk. Há uma pequena promiscuidade, um circuito de pessoas que se cruzam, que admiram o trabalho uns dos outros, que têm ligações a artistas, a lugares, a festivais. É muito uma partilha de bora lá fazer acontecer. Mesmo sofrendo desta condição periférica, de metidos no meio do oceano, o importante é criar conteúdos, um tal push. Que de certa forma se torne uma referência e não meramente um ponto de passagem.

O Tremor restringe-se a Ponta Delgada ou espalha-se pela Ilha de São Miguel?

No início o epicentro era Ponta Delgada, mas o Tremor tem-se alastrado para o resto da ilha. De um Festival de um dia passou para cinco, da cidade para a ilha inteira. Muitos dos concertos e outras actividades terão lugar em sítios surpresa, onde as pessoas não sabem o que vai e onde vai acontecer, sendo que no último dia toda a acção se concentra em Ponta Delgada, desde as 10 da manhã.

Outra das preocupações é dar visibilidade a artistas açorianos.

Gravámos um conjunto de vídeos que estão a passar na RTP e que contaram com o apoio da Antena 3, que se intitulam Tremor na Estufa. Sucintamente são showcases de artistas em lugares inesperados e que dá a conhecer o artista através de uma entrevista. É uma forma de sair do formato concerto, mas dentro deste formato nós encontramos segmentos com o objectivo de alastrar ainda mais a acção para lá de São Miguel, como é o caso da Tremor Tour – Lisboa, Porto, Londres, na Ilha do Faial, a nossa estreia noutra ilha, fazemos também o Mini Tremor que passa pela ideia de trazer as crianças juntamente com os pais, e um Tremor na Escola, que são showcases no meio das escolas secundárias, para testar a ideia da escola, neste caso secundária, como uma usina de talento, quem sabe de próximos músicos. Damos a conhecer o potencial, deles se puderem envolver, conhecer o Tremor e ao mesmo tempo, damos a descobrir artistas locais que fazem. É uma forma de ultrapassar uma lógica muito instituída em São Miguel que são as bandas de covers.

Tremor 3

Esta relação com as instituições locais estende-se à Universidade, também ela um estandarte da região?

Curiosamente não, mas não por nenhuma razão em particular, simplesmente ainda não se propiciou. Contudo, há muito trabalho que pode ser feito, desde a comunicação, a arquitetura, o trabalhar com a paisagem.

E com outros festivais igualmente conhecidos como o Angra Jazz, por exemplo?

Não especificamente com esse, mas tivemos uma participação no MÚMA - Música em Março na Horta (Faial) e é a primeira vez que nos ligamos a outro festival de música do arquipélago, criando uma bolha de programação.

É desejável da vossa parte criar mais réplicas do Tremor ao longo do tempo?

Pode e deve haver. Atualmente não pode, por uma questão básica que é o dinheiro. Projetos destes num contexto como o açoriano ainda são uma espécie de ovni, para todo o tipo de entidades desde as privadas às públicas. Apoiam, mas ainda não há verdadeiramente um entendimento do potencial que tem e do impacto que pode ter localmente, não só a nível turístico, mas a nível artístico, a nível comunitário, mas também a projeção do Tremor para fora de si. Ainda há muito trabalho a fazer-se, neste âmbito específico, acreditar que a cultura dá dinheiro e cria valor. É preciso da nossa parte ter amor à camisola, fazer ver que vai acontecer; a partir deste momento abre-se espaço.

Voltando, é desejável que isso aconteça, que o Tremor em vez de ser a cereja no topo do bolo seja algo que marque ao longo do ano. Há muitas possibilidades, desde a edição discográfica, deslocar a ideia para outro tipo de contextos, outro tipo de ilhas, mesmo alargar a outros festivais ou pensar noutras figuras, como a das residências artísticas, que exigem outro tipo de abordagem por exemplo trabalhar com um património vastíssimo como são o das filarmónicas, os grupos de cantares que abundam naquela terra, e que se juntam na Casa do Povo e nas Juntas de Freguesia. Potencial há, há caminho sem dúvida.

Tremor 6

Qual é para ti a marca identitária do Tremor?

É um festival inclusivo, dos 8 meses aos 80 anos, há gostos para tudo e experiências para todos. É extremamente barato e dá Milhões de Festa, é uma janela de curiosidade, para abrir e ver o mundo, o que se passa nele quando se pensa em diversidade e em novos discursos, ou novas forma de criar autoria em música, e é um veículo para mudar Ponta Delgada do avesso e criar encontro multigeracionais, de todo o tipo de pessoas – do presidente, ao senhor da padaria, do senhor que limpa a rua ao polícia, da criança ao pai. É inclusivo nesse sentido e informal de próximo. Não há zonas vips, não queremos, porque no fim do dia somos todos pessoas, temos todos as mesmas necessidades.

Paredes de Coura pode ser um modelo, na associação tão forte entre um festival e uma terra? Qual o modelo que gostariam de seguir?

Não sei, para já estamos a afirmar uma ideia. Não é só um dia, são cinco. Ou seja não é só uma explosão. Também queremos muito explorar a relação com a paisagem, não na vertente mais imediata de a utilizar como um cenário, mas de a pensar como a podemos trazer para o centro da experiência da música e do conjunto. Uma matéria trabalhável, vincar o aspecto multissensorial. O Tremor deve também ser um impacto na vida da ilha, deve intrometer-se.

Enquanto Micaelense e uma vez que estamos a falar de escolhas o que gostarias de nos sugerir para visitar?

Para sair à noite o Arco 8, tem um papel muito importante na cidade, não só por parecer que estás em Berlim, mas por ser um lugar interdisciplinar, onde há exposições, projeções de filmes, podes beber um copo e ver um concerto. É quase uma âncora. À parte disso temos experiências gastronómicas como os bolos Lêvedos do ¾ e beber um belo gin ou um lugar que muita pouca gente conhece, o Lam’s que tem o melhor pequeno almoço americano que já comi na vida: são panquecas, com o xarope americano, com ovos mexidos, bacon e com tudo o que um gajo precisa. Tens também o Mané Cigano, um dos restaurantes mais baratos e populares, tem chicharros fritos com molho de vilão, tem das gulosaimas mais incríveis da terra. A nível de música tens por exemplo a Discoteca Vasco onde podes ir comprar a viola da terra, com doze cordas, que é uma espécie de braguesa.

Apelando agora ao teu espírito crítico, o que está a fazer falta neste momento a Ponta Delgada?

Sinto muito a falta da figura de diretor artístico das instituições. Ainda se confunde muito direção artística com administração. Faltam projetos artísticos com objetivo claro. Há bons trabalhos como o Teatro Micaelense, o Coliseu também vai tendo coisas interessantes, mas faltam projetos mais claros de uma direção artística, que dêem uma identidade e que façam as pessoas aderir a um roteiro para lá das vaquinhas, das lagoas, das praias, da água quente. Isso é urgente para qualquer tipo de arte – não temos um festival de cinema, por exemplo, já tivemos e era incrível. No fundo, continuam a faltar festivais com direção artística, seja em que área for.

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FESTIVAL TREMOR – Ponta Delgada (Açores)

15 – 19 Março

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