Fotografia: Costa Mendes.
Trabalhar com as coincidências deve ser método a seguir. Havíamos perdido o concerto de Peixe : Avião numa edição passada do Vodafone Mexefest, no entanto voltámos a reencontra-los há dois anos, no Maria Matos, na noite em que musicaram Ménilmontant (1926) de Dimitri Kirsanoff. Em boa hora este encontro. Correspondia a uma fase de transição sonora face aos álbuns anteriores e deixava antever o que agora se materializou com o mais recente trabalho desta banda bracarense – Peso Morto. Um universo mais denso, as imagens como texturas sonoras, a voz como instrumento e ainda a antevisão do concerto no Lux no próximo dia 18 de Fevereiro, o inexcedível trabalho do gnration e do Festival Semibreve na criação de públicos em Braga foram alguns dos temas abordados com André Covas, guitarrista da banda, num final de tarde pelo Cais do Sodré.
Regressemos ao Maria Matos e à musicalização do filme de Dimitri Kirsanoff Ménilmontant. A vossa relação entre a música e as imagens começa com esta encomenda do Curtas de Vila do Conde ou é anterior?
Já tínhamos feito bandas sonoras para coisas muito pontuais. Em 2010 uns temas mais em formato canção para os realizadores puderem utilizar em O que há de novo no amor. Mas o Ménilmontant corresponde ao primeiro momento em que temos de musicar um filme desta importância, compor de propósito para o filme, em vez de adaptarmos temas que já tínhamos. Compor para as próprias dinâmicas do filme. Foi fazer uma banda sonora sem cortes, linear, para a totalidade do filme e não para segmentos, como da primeira vez.
Como foi transpor esta experiência para a composição do novo álbum? Se é que foi vossa intenção fazê-lo.
Esse exercício (Banda Sonora para o Ménilmontant) libertou-nos completamente do formato de canção. Tínhamos de sair desse campo para responder à encomenda. Isso obrigou-nos a experimentar uma série de soluções musicais como por exemplo o tratamento da voz, deixou de ser necessário que o Ronaldo (Ronaldo Fonseca) escrevesse as líricas como fazia anteriormente. Este processo acabou por abrir algumas portas, não necessariamente musicais, mas mais a nível da textura e da estrutura. São novas formas de explorar o som. Esta vontade vinha já do álbum anterior, trabalho homónimo, mas agora de uma forma mais vincada - processar a bateria como se fosse uma guitarra, por exemplo. Ligámos os microfones à bateria e passámos por uma quantidade de pedais e de seguida pelo amplificador de guitarra. O som da bateria é um som entre o acústico e o som processado. A guitarra também foi trabalhada de uma forma mais rítmica, a guitarra muitas vezes não define nem a melodia, nem a harmonia, é mais um instrumento de criação de texturas e ambientes para servir de cama para os restantes instrumentos. Por fim, a voz é cada vez mais tratada como instrumento, mas tanto no Ménilmontant como neste novo disco, o Peso Morto, com uma componente lírica que nós gostamos de manter.
Que imagens vão buscar para a composição para além do trabalho sobre o Ménilmontant de que já falámos?
A influência da imagem não existe directamente. Pode haver a imagem como um todo, mas não da procura de paisagens imagéticas que de alguma forma sirvam de inspiração para a composição. Essa componente aparece numa fase posterior quando tratamos do design, das fotografias. A imagem surge mais condicionada pela música do que o contrário.
Peso Morto é também uma imagem forte. Pode remeter para algo dispensável, mas ao mesmo tempo para o filme do Iñarritu (21 gramas).
O título não se deve tanto ao significado do termo, mas mais pelas imagens que a expressão suscita. Uma coisa escura, pesada, não descartável, que custe a carregar. Peso Morto é também o tema de uma das músicas do disco e foi a escolha que nos pareceu mais condizente com a estética do álbum.
Depois do primeiro vídeo Quebra agora Miragem.
É o Ronaldo (vocalista) que escreve as letras num registo mais ou menos autobiográfico, com uma margem para diferentes interpretações. Os títulos nascem daí. Mas uma vez que as letras verbalizam, de certa forma, a parte instrumental, é natural que se veja nos títulos determinadas imagens, talvez por corresponder a uma parte mais evasiva que gostamos de explorar.
O Miragem foi filmado em Cracóvia, Polónia. O David Lynch filmou em Łódź o Inland Empire. Novamente o universo cinematográfico?
Foi uma coincidência feliz, nada mais. A equipa que realizou o vídeo, o André Tentúgal e o Vasco Mendes, tinha ido à Polónia quando pedimos que o realizassem e foi o cenário perfeito para as imagens que queríamos captar, porque, como deves imaginar, não temos orçamento para enviar alguém para ir lá filmar.
O novo trabalho segue uma linha mais densa, mais escura. Desde as composições até à imagem da capa. Porquê?
No álbum anterior, o homónimo, já começámos a ser mais soturnos. O nosso universo tem vindo a adensar-se, sem saber muito bem porquê. Não estamos a querer assumir essa persona, mas a música é cada vez mais textural e visceral e não fazia sentido a imagem gráfica não ir por esse caminho.
Antes do concerto do Lux já tocaram no Rivoli. Qual foi a receptividade? Quem vos ouve também se sente mais imerso nesta estética?
O concerto não dá muita margem para o público se exprimir. As coisas estão muito encadeadas. O ambiente musical, gráfico e cénico é muito pesado, é escuro, cheio de fumo, as luzes são monocromáticas com umas projecções mais estranhas. Não quero soar a pretensioso, mas talvez o público fique algo perplexo, uma vez que não tem referências anteriores. Mas, das pessoas com quem falámos, a reacção foi bastante boa. Acho que não é um concerto muito fácil, porque é alto, barulhento, porque a iluminação é particular. Decididamente não é concerto para levar os nossos avós (risos).
E o que têm preparado para o Lux? E para o resto da tour?
Convidados especiais não vamos ter, isso não. Vamos centrar-nos na apresentação do novo disco, mas também do álbum anterior. Os temas dos primeiros dois discos não serão tocados são um ovni naquilo que temos vindo a trabalhar. Depois deste tocamos no dia 20 no Theatro Circo.
A abordagem mais instrumental foi pensado como uma possibilidade de tocar lá fora?
Não. Assumimos desde o início que a língua ia ser uma barreira e nunca investimos na logística que é necessário de antemão para conseguir exportar a música, mesmo agora que a voz é tratada como um instrumento e não de uma forma tão tradicional.
Coincidentemente ou não parece que há cada vez maior receptividade para este tipo de música, seja através de bandas como os Sensible Soccers e Gala Drop, seja por uma cada vez maior adesão a festivais e concertos do género. A que se deve esta mudança?
Sinceramente não consigo saber qual a razão. Talvez seja mais em Portugal do que lá fora e também não sei até que ponto é novidade cá ou se simplesmente essas bandas são mais conhecidas agora e talvez por isso pensar-se que há uma maior abertura para este género. Ainda há uns tempos estava em conversa com a Ana Deus (Três Tristes Tigres e Osso Vaidoso) e posso concluir que também não é uma coisa geracional, nessa altura havia grande margem para a experimentação mesmo dentro do formato canção.
Há uma tendência crescente para as bandas acompanharem todo o processo – composição, gravação, edição, promoção. O futuro de muitas bandas passa por esta faceta mais in-house, digamos assim, que vocês também assumem?
Cada vez se nota mais uma autonomia de meios por parte das bandas, tanto na parte criativa, como na parte mais business da coisa. Há mais meios para fazer as suas gravações, algumas também privilegiam formas mais simples de compor e de gravar, usando por exemplo meios electrónicos, mais fáceis de trabalhar em estúdio; por outro lado há uma série de contactos que são mais fáceis de encontrar (promotores, media) que fazem com que as bandas consigam ter uma grande dose de autonomia. Vai ser uma tendência a manter-se, mas tal não implica que as estruturas não tenham a sua importância, por serem selos editoriais, mas também porque lidam mais facilmente com questões de facturação, distribuição que nenhuma banda quer tratar. Por outro lado, através de um catálogo mais restrito de artistas é mais fácil promovê-los ao nível de media. As estruturas tradicionais têm de se adaptar, porque muitas vezes não há cuidado ao nível do trato; cuidado esse que se nota no trabalho da Lovers & Lollypops e da Revolve por exemplo. Estruturas de maior proximidade e que retiram dos ombros das bandas o trabalho mais chato.
Diz-se que o negócio da venda discográfica está em crise, o da música não. Como se gerem estes dois pólos: edição e concertos ao vivo?
A edição pode funcionar um pouco como um chamariz para a marcação de concertos e depois daí a marcação de uma tour. Outro caminho, e infelizmente para mim, vê-se cada vez mais marcas a apoderarem-se do negócio da música. Vemos marcas de roupa a construir estúdios de gravação, a presença nos grandes festivais, e muito provavelmente vão entrar, com cada vez mais força, no negócio da edição e distribuição.
O modo como se constroem os concertos pode mudar. Aqueles dos temas, palmas, encore, palmas vão continuar a existir, mas é preciso mais. O quê? Não sei. Se calhar pode passar por uma maior separação entre o disco e a forma de o apresentar ao vivo. Não estou a falar das grandes produções hollywoodescas em que pagas balúrdios só para fazer parte de.
Eu estou bastante contente com o espectáculo que preparámos e que acrescenta bastante ao disco, mas claro que seria muito interessante abraçarmos essa visão mais abrangente, digamos, de concerto.
Voltando a Ménilmontant foi um exercício de composição, mas o propósito da composição para este filme nunca foi dar origem à gravação de um álbum, foi sim uma composição para um concerto. Nós sabíamos que havia essas limitações de tocar ao vivo e que não tens no disco, em que estás protegido por um estúdio, em que podes gravar n pistas, e enriquecer a composição. O Ménilmontant foi composto para ser tocado e não para ser gravado. É um processo totalmente diferente.
Em Braga, donde são originários, nota-se uma programação musical cada vez mais interessante, seja via Semibreve, seja pela via da programação do gnration, isto tem afectado a vossa forma de fazer música?
Se calhar é mais o contrário, porque ambos têm ligação a Peixe : Avião. Eu e o Luís Fernandes estamos envolvidos no Semibreve e o Luís na programação do gnration. Mas é excelente que Braga tenha uma vida cultural mais activa e que se conseguiu romper com um certo marasmo. Desde há 5 anos, com a reabertura do Theatro Circo e o Paulo Brandão a programar, que foi óptimo, e agora esta nova vaga com uma série de pequenas iniciativas que ocupavam um centro comercial devoluto, onde se organizavam concertos que espero que perdurem; e essas sim, que inspirem a malta mais nova para pegar nas guitarras e fazer música.