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A percepção do mundo físico e visual, dá-se através da luz. A cinematografia de um filme, entre outros elementos fílmicos, transporta-nos para as dimensões que o realizador espera que o seu público atinja.

A imagem, a luz ou a fotografia ganham grandes dimensões na percepção visual que vamos construindo ao longo da vida. Culturalmente a luz, a cor e a textura de um filme marcam a nossa memória e a forma como ela vê e captura momentos imagéticos; esta percepção de luz varia de pessoa para pessoa, de cultura para cultura, de país para país.

A cinematografia do filme Love, de Gaspar Noé, trouxe sem grandes dúvidas uma expansão lumínica ao imaginário cinematográfico do seu público, habituado a cores não tão intensas e paralelas às ditas cores da "vida real". Na verdade os elementos visuais neste filme destacam-se mais do que a própria narrativa.

O director de fotografia, Benoît Debie, já tão conhecido pela fotografia em filmes como Enter the void ou Irréversible, deixou as expectativas bastantes elevadas. Nos seus filmes deixa a sua marca bem acentuada com o uso de cores peculiares, curiosas e controversas ao olho humano.

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De forma a contextualizar a luz ao longo da história, começo por contar em breves palavras os três actos da narrativa deste romance pós-moderno. O filme narra a vida de Murphy, um cineasta americano que estuda na capital francesa, Paris. Murphy encontra-se altamente frustado com a vida que leva ao lado da mulher, Omi, e do filho. Um dia recebe um telefonema da sua ex-sogra e a narrativa do filme altera-se. É aqui que a mente de Murphy é invadida por lembranças da ex-namorada Electra e o filme começa a ser um inteiro flashback das memórias perdidas da ex-namorada num subconsciente próximo. Passamos a uma dicotomia tripartida da relação entre as três personagens, Omi, Murphy e Electra.

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Este filme apresenta uma composição cromática complexa, a luz e a cor variam, sendo um reflexo do estado emocional das personagens; é aqui que há uma viagem entre o desejo, sexualidade, amor, dor e conflito. As imagens iniciais começam por ser muito apelativas, em tons pastel, bastante distante dos sentimentos mas perto da realidade quotidiana. Uma luz semelhante à luz natural, sem artificialismos de cor, onde tudo nos parece bastante familiar e típico do envolvimento de duas pessoas. Esta luz orgânica aparece ao longo do filme, dando a noção de existência, normalidade, verdade.

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A luz na narrativa deste primeiro acto tem uma paleta bastante natural, entre os pastéis e os brancos, semelhante à realidade. Assim que Murphy recebe o telefonema a fotografia do filme altera-se melodramaticamente, passamos dos tons pastéis, para uma cor mais fria, os verdes e mais tarde guardamos posição nas cores mais avermelhadas. Sempre que Murphy se encontra sozinho em cena, a luz é mais dramática mais irreal, e mais avermelhada, ao contrário de quando está acompanhado por outras personagens no mesmo espaço, neste caso a luz é mais difusa, mais natural e também ela mais distante apesar de estar mais próximo a outras personagens como Omi. Os verdes surgem de forma bastante persistente, ficando no meio das cenas com pastéis e dos vermelhos, representa a interacção entre pessoas e espaços.

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Existe utilização abundante de cores altamente saturadas ao longo do filme, neste caso inicial é para evidenciar a preocupação excessiva e obsessiva de Murphy por Electra. Uma luz bastante difusa, mas já artificial e atormentada mas ao mesmo tempo que delicada, como é o caso dos laranjas, e amarelos presentes em diversas cenas.

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No flashback que envolve toda a narrativa, surge Electra vestida de vermelho, cor provocante e cor dos desejos de Murphy. Para criar a dependência de cores quentes, que envolvem o ambiente, as cores frias ficam em segundo plano criando a profundidade de campo dos espaços, a ideia de tridimensionalidade é bastante visível. Electra representa sedução, aparece em cenas com tons mais eróticos, que não fazem parte da luz do dia-a-dia. Talvez esta luz e cor, retrate a forma como vemos o amor e o sexo, muito sensual, muito erótico, bem contrastado, forte e ao mesmo tempo leva-nos para uma dimensão da fantasia onde gostaríamos de permanecer.

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Sempre que Murphy e Electra se envolvem, reflecte tal intensidade que chega a haver um estado de transe, a cor não se move nem a luz, tudo pára, tudo se envolve.

Os contrastes da luz leva-nos para uma atmosfera bastante assertiva dos sentimentos contraditórios de amor e dor por alguém. É um filme que nos traz a luz dos relacionamentos, e do relacionamento de Murphy com Omi e de Murphy com Electra.

Esta dinâmica de luz e cor altera-se do frio ao quente, simultaneamente ao estado dos relacionamentos e conforme são mostrados. Há aquilo que chamamos de paradoxo entre a crueldade da realidade e dos relacionamentos, com a imagem fantasiosa e sensual dada também pela luz. É-nos mostrada a realidade, mas é agilizada pela fotografia do filme, pelas cores que nos dão a sensação de uma experiência visual aprazível.

A composição da imagem também é muito importante neste filme, os enquadramentos são quase sempre equilibrados e simétricos. Este tipo de composição cuidada traz uma sensação de completude, principalmente quando existe mais do que uma personagem no plano.

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Em síntese, o realizador e o director de fotografia, através da harmonia entre a realização, cinematografia e direcção de arte, convidam o espectador a entrar dentro do universo que lhe propõem e de preferência que o espectador permaneça por lá. É uma proposta fílmica bastante atrevida, com grandes experimentos de uma nudez gráfica que chocou alguns e que agradou muitos outros. Também não se esperava outra coisa, sem ser a controvérsia gerada em torno dos filmes de Gaspar Noé.

Um filme odisseico, todo ele mentor de um erotismo hiperbólico, uma estética muito própria, em que a luz e a cor se aproximam às artes plásticas, videoclip e video-art. Apresenta-nos dicotomia entre a luz real e a luz ilusão, que se manifesta à volta da vida e dos pensamentos.

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