DIÁRIOS DO UMBIGO

  • none
  • none
  • none
  • none

De 8 a 13 de Setembro, decorreu a 9ª edição do Motelx. A um ano de comemorar o décimo aniversário, o festival teve uma das suas maiores enchentes e também uma das programações mais interessantes. O Código Genético destaca Lost Soul: The Doomed Journey of Richard Stanley's Island of Dr. Moreau e Roar.

Alguns dias após a morte de Wes Craven, o Motelx abriu a sua 9ª edição com a sequência inicial de Scream. Foi uma justa homenagem ao homem que ajudou a construir e a desconstruir o mundo do terror, que o virou do avesso e nos mostrou as entranhas do género, tentando sempre perceber o que raio é isto do medo e a forma como lidamos com ele. “Horror films don't create fear. They release it.”

Depois de recordarmos que o primeiro assassino do Sexta-Feira 13 foi a Pamela Voorhees (a sério, isto pode salvar-vos a vida) o festival arrancou com The Visit, o regresso de M.Night Shyamalan ao (seu) cinema de autor e a dois temas que lhe são queridos: a inspiração nos contos de fada/folclore e as famílias disfuncionais.

Blair Witch meets Hansel & Gretel

Há mais de 15 anos, a mãe de Becca e Tyler fugiu de casa para casar. Desde aí, nunca mais voltou a falar com os pais. Quando estes finalmente tentam reatar o contacto, convidam os netos para uma visita à sua quinta. Becca, uma aspirante a realizadora, aproveita a oportunidade para filmar um documentário sobre a mãe, registando toda a viagem com a sua câmara. Quando finalmente conhecem os avós, Becca e Tyler reparam que eles apresentam comportamentos estranhos assim que o sol se põe. Para evitar constrangimentos, os dois irmãos não devem sair do quarto depois das 21h30.

Alguns furos abaixo do seu melhor filme, Unbreakable, mas também vários acima dos últimos dois, The Visit é um regresso bastante respeitável do realizador americano, que continua a explorar a elasticidade da fórmula narrativa que encontrou com O Sexto Sentido. Infelizmente, o equilíbrio entre os momentos de humor e de tensão nem sempre é conseguido (esse jogo era mais subtil e eficaz em Sinais, por exemplo) o que tira força ao filme, especialmente para quem ia à espera de um thriller mais acutilante. Na verdade, Shyamalan editou duas versões de The Visit – esta e outra menos “teen” e risos nervosos que não chegou a ver a luz do dia. Algumas sequências do filme dão a entender o que poderia ser essa outra versão e parece-nos que seria melhor. Não que The Visit seja mau, porque não é, mas porque no thriller de terror os risos não se devem sobrepor aos saltos na cadeira. E aqui, isso acontece algumas vezes.

Apesar das suas falhas, o filme recomenda-se. O registo found footage funciona, ainda que Shyamalan tenha chegado com alguns anos de atraso a esta ferramenta que tem sido usada até à exaustão; as personagens dos avós são verdadeiramente assustadoras e o twist final não desilude.

“The house that Freddy built” e que o Dr. Moreau quase destruiu

Se não conhece o trabalho de Richard Stanley, Lost Soul: The Doomed Journey of Richard Stanley's Island of Dr. Moreau é um bom ponto de partida para uma paixão assolapada pelo cinema do realizador sul-africano.

Este documentário, realizado por David Gregory, acompanha o making of do filme que nunca aconteceu – a versão cinematográfica d'A ilha do Dr.Moreau idealizada por Stanley.

O livro de H.G.Wells acompanha o realizador desde a infância e, em 1996, a New Line deu-lhe a oportunidade de o adaptar ao grande ecrã. O que era suposto ser uma pequena produção, transformou-se num orçamento de milhões, com Marlon Brando e Val Kilmer como cabeças de cartaz; o que era a realização de um sonho, acabou por ser um pesadelo de vários meses numa ilha ao largo da Austrália. Sem conseguir dominar a equipa e os actores (e mais uma série de desastres na produção) Stanley acabou por ser afastado e substituído por John Frankenheimer. Este foi apenas o início de uma série de acontecimentos rocambolescos que provam, mais uma vez, que a realidade ultrapassa sempre a ficção.

Da versão que chegou ao cinema, devem lembrar-se de um Marlon Brando em versão tenda, vestido de branco. Da visão por concretizar de Richard Stanley, vão reter muito mais. Só pelo artwork, conseguimos perceber que seria incrível e que, acima de tudo, respeitaria uma premissa essencial da obra de H.G.Wells: o nivelamento entre o humano e a besta, duas condições mais próximas do que parecem. Tal como em Hardware e Dust Devil, os dois filmes de culto do realizador, o olhar de Stanley realça a espiritualidade existente na história de Wells, unindo o misticismo à ficção científica.

Uma década depois, a New Line já é mais do que a casa que o Freddy construiu (alcunha dada à produtora depois do sucesso de Um Pesadelo em Elm Street nos anos 80) e partiu para produções ainda maiores do que A Ilha do Dr. Moreau: O Senhor dos Anéis. Nesses dez anos, Richard Stanley isolou-se nos Pirinéus franceses e, apesar do tormento que podemos ver em Lost Soul, continua a querer fazer a sua versão do filme. Mesmo que esteja novamente condenado ao fracasso.

Uma Leoa chamada Elsa

Quando eu tinha 10 anos e vi o Born Free, também quis ter um leão em casa. Mas, como os comuns mortais, limitei-me a arranjar um gato. Noel Marshall (produtor d'O Exorcista) e Tippi Hedren (actriz fetiche de Hitchcock) pertencem à realeza de Hollywood, portanto, criaram 150 leões e um sortido de outros grandes felinos. Durante vários anos, a família manteve uma autêntica reserva numa quinta em Los Angeles. Lembram-se das fotos da revista Life nas quais Melanie Griffith e a mãe aparecem abraçadas a um leão ou a dormir com um destes gatos em ponto grande?

Em 1981, resolveram fazer um filme que alertasse para o abate indiscriminado destes animais em África, usando os leões que tinham em cativeiro. A história é simples: Hank (Noel Marshall) estuda grandes felinos em África e vive com mais de uma centena deles. Quando a mulher e os filhos chegam para o visitar (Tippi Hedren e os filhos do casal na vida real) caem no meio de uma disputa de território entre dois leões.

Foi um filme feito em família e a ideia era comercializá-lo como um filme para ser visto por todas as famílias. Foi pena ninguém ter dito isso aos leões, porque a versão final foi considerada demasiado assustadora para ser distribuída nos EUA, apesar de ter sido lançada na Alemanha e em Inglaterra, por exemplo.

Contra todo o bom senso, nenhum dos animais utilizados no filme estava treinado, portanto a narrativa foi sendo adaptada ao seu comportamento natural. Segundo John Marshall, filho de Noel e um dos actores do filme, a equipa limitou-se a fazer duas coisas: identificar acções que os leões gostassem de repetir várias vezes – perseguir a mota que John conduzia era uma delas – e a actuar sobre a premissa de que se mostrares medo a um leão e fugires, ele vai atrás de ti. Isto deu origem a cenas em que os actores estão rodeados de 30 felinos e arranhadelas bem verdadeiras. Mais de 70 pessoas foram feridas, vários membros da equipa desistiram e o filme demorou cerca de cinco anos a ser concluído. A título de exemplo, num dos novos cartazes de Roar, vemos uma foto de perfil de Jan de Bont (o director de fotografia do filme, que mais tardia iria realizar Speed) com a parte de trás do escalpe arrancada e vários pontos na cabeça (on the bright side, é capaz de ter arranjado uma desculpa clínica para o Speed 2).

Roar estava perdido há mais de 30 anos e foi recentemente descoberto pela Drafthouse Films, que o vai relançar nos cinemas, mesmo com o desagrado de alguns membros da equipa. Não é um grande filme, mas é uma pérola que merece ser vista, porque mostra que o cinema também foi criado para ser uma fantástica loucura. Roar é maravilhosamente parvo e estupidamente perigoso. Já não se fazem muitos filmes assim.

Who's there?

O Motelx terminou com o regresso de mais um filho pródigo, Eli Roth. Depois de ter sido o convidado de honra do festival em 2011, Roth volta com Knock Knock, um remake de Death Game (1977).

Numa noite de chuva, Evan está em casa sozinho, sem a família. Duas desconhecidas batem à porta a pedir ajuda e Evan deixa-as entrar. A partir daqui, entramos numa história de home invasion, mais pontuada pelo sentido de humor do que pela violência gráfica, ao contrário do que seria de esperar de Eli Roth. Com tendência a um moralismo simplista (embora verdadeiro em essência) acima de tudo, o filme vale pelas interpretações: um surpreendente Keanu Reeves em modo low profile; Lorenza Izzo num cruzamento psicótico entre Angelina Jolie e Fairuza Balk; e Ana de Armas, numa versão loira burra de Penélope Cruz.

Pelo meio, houve muito mais para ver, incluindo o regresso de Kim Basinger na pele de uma mulher obcecada por ter um filho. I Am here, do realizador dinamarquês Anders Morgenthaler, não é um filme de terror convencional, embora nos relembre que não há nada mais assustador do que a vida normal; a vida dos seres humanos falhados e não a dos monstros e dos fantasmas. Embora caia em algumas redundâncias visuais, somos conquistados pela força da história e, acima de tudo, pela sobriedade, elegância e minimalismo da interpretação de Basinger. Jordan Prentice é também um excelente contraponto.

Destaque ainda para os dois filmes portugueses da secção Quarto Perdido. A Caçada do Malheiro e Sinal Vermelho são duas obras do final dos anos 60 / início de 70 que mostram como Portugal não ficou de forma do movimento exploitation dessas décadas; o prémio Mov Motelx para a melhor curta de terror, cujo vencedor foi Simão Cayatte com Miami; a sessão comemorativa dos 40 anos de Rocky Horror Picture Show, com direito a coreografia do público; o alargamento da secção Lobo Mau, com mais sessões na Cinemateca Júnior e workshops. Aliás, o aumento das actividades paralelas – palestras, oficinas, três dias de warm up com festas e projecções de rua – foi notória nesta edição. O que quer dizer que o público do Motelx, o actual e o que está a crescer, está a ser bem alimentado. Para o ano, lá estaremos para soprar as velas do 10º aniversário e comer uma fatia de bolo.

ARTIGOS RELACIONADOS

Diários do Umbigo

Newsletter

Subscreva-me para o mantermos actualizado: