JOALHARIA

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Imagem de capa: Sanduiche Voadora.

Teresa Dantas usufruiu formação em técnicas de joalharia e restauro. Durante vários anos, desenvolveu outros estudos na área da joalharia com competências projectuais e teóricas: na ESAD – Escola Superior de Artes e Design de Matosinhos, na Pós-Graduação em Design de Joalharia [2009.2010] e no Mestrado de Produto / Joalharia [2010.2011].

Os resultados são surpreendentes.

Comecemos pela sua fase na ESAD. Quando chegou, trazia o prazer de coleccionar artefactos, pedaços de peças e materiais da mais variada origem e ordem ou, melhor dito, desordem.

Dantas irá tomar consciência dessa desordem e decidir como dar-lhe sentido. Já na sua Pós-Graduação em Design de Joalharia se verificava esta aposta. As suas peças, com matérias recuperadas e pintadas, ou pintadas e oxidadas pelo tempo, lembravam obras já antigas, como as collages de Kurt Schwitters.

A dissertação do seu mestrado intitula-se Construção de conteúdos e de sentidos em joalharia artística: é uma abordagem crítica do consumo.

Irá corresponder a uma reflecção teórica relacionada com os tópicos indicados. Em processo, entre teoria e prática, Dantas toma consciência de que, em joalharia contemporânea – diferentemente do que tem sido escrito acerca de outras formas de arte – as matérias, as cores, o brilho, o fosco, podem falar por si mesmos. São como palavras com as quais se constroem frases e se argumenta sobre as mais diversas realidades. Isto é: podem ser conteúdos metaforizados, cujos conteúdos podem conduzir a metamorfoses, tornando-se fragmentos ou fontes de sentido simbólico. Assim, Dantas descobre uma das parcelas da sua matriz de linguagem artística.

Fonte da Vida
Fonte da Vida

A propósito desta matriz, virá, articuladamente, o seu empenho em dar sentido à dita desordem inscrita na parafernália de artefactos coleccionados. Antes de mais, salientou-se a importância da selecção, onde cada artefacto pode dizer coisas diferentes. Então, a arte a partir da segunda metade do século XX, a palavra desordem transformou-se em des-ordem, que passa a ser algo que se opõe a qualquer ordem estabelecida. Criar artefactos extra-ordinários, ou seja: objectos que estão para além daqueles que são comuns. Assim, Dantas configurou um modo de des-ordenar consciente, adulto, reflexivo e extra-ordinário.

Ao referir des-ordenar e extra-ordinário, estamos perante um princípio da arte contemporânea e de uma das três razões da arte apontadas por Gerard Vilar. Sublinha este autor que estas razões diferem de outras razões, como da ciência. A razão poética, ou criativa, indica-nos consciência e sensibilidade do artista relativamente a um aspecto do mundo e da vida reais a que pretende dar sentido simbólico; é o caso de Dantas. A razão comunicativa indica o que um artista pretende dar-nos a ver e a pensar simbolicamente, mostrando as experiências estéticas que nos propõe. Digo mostra, porque raramente é fácil interpretar uma obra artística contemporânea, que há de ser dada pela explicitação das intenções do próprio artista, para que, como dizia Danto, a crítica possa propor linhas argumentativas e interpretativas, à qual se seguirá o nosso interpretar de sentidos. Esta forma apriorística pode ser suplantada pela qualidade que detectamos numa obra, ou, pela surpresa que nos provoca. A única – razão funcional da arte, corresponde a des-ordenar toda a ordem ou código estabelecidos, assim como toda a espécie de gramáticas artísticas (ou outras) já conhecidas.[i]

Quanto a Dantas, nasce algo que lhe é próprio: uma matriz estética fragmentária e conscientemente des-ordenada que nos surpreende através de peças extra-ordinárias.

Dantas, sem esquecer as experiências em restauro, conjuga conteúdos e meios, vai construir uma matriz de linguagem motivada por uma joalharia híbrida – arte e artesanato. As suas peças não são portáteis, nem a formas de adornar o corpo. Propõem-nos pensar o mundo actual, enquanto joalharia, são manifestações artísticas, isto é: argumentam sobre aspectos de um mundo de coleccionista.

Sementeira
Sementeira

Como todas as linguagens artísticas, esta matriz surge na senda de uma importante abertura filosófica, a ideia estética kantiana, que nos indica o papel das metáforas artísticas.[ii]  A linguagem simbólica de Dantas diferencia-se de outras – tanto da joalharia, como em outras áreas da arte contemporâneas – porque, recorre a metáforas.

Do mesmo modo, que outras matrizes linguísticas da joalharia contemporânea, as peças de Dantas também se diferenciam de outros tipos de joalharia, são adornos que correspondem, a modos de comunicar, a códigos ordenadores e de natureza sócio-cultural.

O subtítulo da dissertação de Dantas remete-nos para “um projecto para uma abordagem crítica do consumo.” Num momento em que se falava de crise financeira, propõe-nos procurar alternativas sustentáveis. Uma vez mais, lembro que não é fácil ler e interpretar estes atributos nas peças que nesse momento criou.

No corpo da dissertação, Dantas explica o seu projecto A pão e água, como a crítica ao consumo. As peças de joalharia que daí resultaram são, uma proposta de voltar à essência, à escolha daquilo que nos é indispensável, abandonando tudo quanto possa ser excesso. Pão e água são dois símbolos sócio-culturais ancestrais, nos mais variados cantos do mundo.

Templo Voador
Templo Voador

Dantas vai retomar esses símbolos sócio-culturais ancestrais. Vai reciclá-los. Através desses elementos – pão, água e alguns outros associados procura considerar um possível abandono de tudo quanto possa ser excesso.

Teresa Dantas mantém-se uma pessoa muito discreta. Vive num mundo seu, atenta ao mundo global. Dantas continua o seu processo de investigação artística. Atenta, foca agora outros temas, sempre actuais. Ao modo insólito e surpreendente como o foca, correspondem os muitos prémios que recebeu logo após terminar o mestrado, as selecções para publicações e para participação em exposições internacionais, tal como constam no seu currículo.

[i] Vilar, Gerard, 2005, Las razones del arte, Madrid, Machado.

[ii]  KANT, Immanuel, 1876, Crítica del Juicio, seguida de las observaciones sobre el asentimiento de lo bello y lo sublime. § 49.Traducción del francés por ROVIRA, Juan José y Moreno, A. G., Madrid, Iravedra. Edición digital, Biblioteca Virtual Miguel de Cervantes, 1999.

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