Sair do Armário, Parte 1
Se me perguntarem o que estou a fazer neste bar da moda às duas da manhã de uma sexta-feira não saberei responder. Dou por mim no meio de quarentonas divorciadas e empregados de escritório de camisa às riscas e dou graças por não viver nos subúrbios. Acotovelam-se por uma bebida inflacionada e falam alto como se estivessem a regatear um par de meias na feira de Carcavelos. Do lugar onde estou, hirto, não vislumbro nenhum DJ por isso deduzo que estejam a passar a RFM tal é o enxoval de cantigas de azeite e uma voz robotizada que pergunta se alguém tem mel.
Olho para o copo já vazio e pergunto-me como cheguei aqui. O melhor é começar no início, ou seja, no fim da tarde de hoje.
Recordo-me de acordar quando o sol estava já no fim do seu fôlego. O telefone tocava incessantemente. Com um olho meio fechado lá o descubro por baixo de um disco dos King Crimson. Era a Elsa. Não me recordo bem da conversa mas creio que tinha a ver com o facto de não escrever nada para a revista há vários meses.
Só poderia ser esse o teor da conversa porque, recordo-me agora, saí de casa à procura de algo diferente para poder escrever um artigo arrojado. Arrojado, sim, era essa a palavra.
Desci ao Rato e segui pela Rua da Escola Politécnica rumo ao Bairro Alto, lá deveria encontrar algo arrojado, com certeza. Deveria meter-me com o porteiro da Adega Machado? Apalpar uma teenager e passar a noite na esquadra? Entrar no Finalmente e entrevistar alguém na casa de banho? Dúvidas de quem teve a infelicidade de escolher as palavras como meio de subsistência.
O que é certo é que acabei já quase no Cais do Sodré que agora tem uma rua pintada de cor-de-rosa... Entrei num dos sítios mais apinhados e pedi um gin. Serviram-me um boião de gelo em copo de pé com umas flores lá dentro. Devolvi o copo e pedi um gin como deve ser, copo alto. O empregado olhou para mim como se fosse o D. Sebastião regressado da bruma. Com algum esforço lá consegui beber um gin como deve ser: sem mariquices.
E aqui estou, entalado como no metro à hora de ponta. Com a memória mais refrescada, sigo pela multidão à procura de encher o copo novamente e ao chegar ao balcão o empregado olha para mim como se me apontasse uma espingarda e eu fosse um faisão. Creio que me roubou um bocado na dose mas não quero abusar da sorte. Volto para o meu lugar inicial e sinto um olhar faíscante em cima de mim.
Cabelo solto e óculos de bibliotecária, de massa, lábios pequenos e nariz inquisidor. Quarenta e poucos anos, certamente. O vestido escuro embrulha umas curvas avantajadas que revelam um traseiro que parece convidar-me a colocar o meu braço à volta da sua cintura, bem aconchegado. No centro o decote desenha-se em V onde descansa um peito de uma monumentalidade bucólica. Se o Botticelli estivesse aqui já tinha pintado uns três quadros. Era realmente uma figura digna de museu. O problema era os sapatos.
Salto fino que a coloca à minha altura e padrão tigresa. Um dos círculos do inferno de Dante devia ser dedicado a sapatos de padrão animal.
Nunca tive jeito para o engate. Se pudesse escrever estes momentos escrevia-me um gigolô à anos 40, com uma frase certeira na ponta da língua e ar de Humphrey Bogart, chapéu incluído. Limito-me a sorrir um pouco, bebendo o gin como quem não quer a coisa.
Mas ela quer qualquer coisa. "Deixa-me adivinhar, és médico ou advogado, certo?", pergunta, quebrando o silêncio.
"Podia ser mas não, sou escritor."
"Engraçado. E escreves o quê?"
"Contos policiais eróticos", respondo, tentando desviar a conversa antes que faça figura de otário. Mas ela fica ainda mais interessada.
"Ai sim? Que engraçado... E vens aqui procurar personagens?"
"É isso, e costumo levá-las para casa para as analisar melhor".
Merda, já fiz asneira. O olhar dela ilumina-se como se eu me tivesse transformado em diamante. Dá um gole gigante na sua bebida e atira os braços para cima de mim.
"E estás à espera de quê? O livro não se vai escrever sozinho..."
Ia dizer que até tinha namorada mas ela pega-me no braço e empurra-me para fora do bar.
"Vamos para minha casa", diz, esticando o braço para apanhar o primeiro táxi que aparece.
Dentro do táxi começa a tocar-me levemente, colocando uma perna por cima da minha. A mão começa a entrar por dentro da minha camisa. A coisa começa a aquecer e eu fico encurralado. Agora não há escapatória.
O táxi foge um bocado da cidade e aterra num daqueles prédios novos com casas do tamanho da segunda circular. Não consigo perceber onde estou até porque ela me empurra para fora do carro com força. Começo a transpirar como um animal à beira do matadouro. Será que esta mulher é uma serial killer? Provavelmente tem marido e está à minha espera para me cortarem às postas. Devia ter ficado calado...
No elevador a boca dela quase que me engole e as minhas mãos estão desgovernadas. Abre a porta e à minha frente desenha-se um apartamento que dava para albergar a população toda do Senegal.
Abre a porta do quarto com solenidade e entra, olhando-me sôfregamente. Despe o vestido com cuidado e revela-se em roupa interior, seda e rendas de requinte.
"Espera aqui um pouco, já volto. Põe-te à vontade", diz-me, com um sorriso matreiro.
A cama é gigante e sento-me, lívido. Onde me fui meter? Algures um incenso arde, e por momentos sinto que estou dentro de um daqueles filmes soft-core que davam na TV a altas horas da noite. Olho para a janela mas provavelmente é alta demais para fazer uma fuga à Indiana Jones.
Ela regressa com dois copos e de certeza que um deles está envenenado. Senta-se no meu colo e, segura da sua vontade, beija-me devagar, desabotoando os botões da minha camisa ritualisticamente.
Bem, já que aqui estou que se lixe. Vamos a isto. Eu até tenho um certo fetiche por mulheres ligeiramente mais velhas de curvas sumptuosas.
Começo a relaxar e a tentar acompanhar a fantasia da mulher, percorrendo o corpo dela com as minhas mãos desajeitadas. Ao fundo uma porta bate com estrondo e continuamos na intimidade. Passos soam pelo soalho de madeira e o soutien dela já está no chão.
"Margarida? Estás em casa?"
Ela tapa-me a boca e eu fico inerte, uma mão num seio e a outra no traseiro.
Os passos começam a avançar e estão muito próximos.
Ela levanta-se num ápice e empurra-me para dentro de um armário gigante, fazendo sinal para não abrir a boca. Fecha a porta depressa e aqui estou eu num armário algures em Lisboa, de boxers e quase sóbrio.
Não consigo ouvir a conversa. Será que é o marido? Devia ter desconfiado. Se calhar é daqueles musculados e vai me dar um enxerto de porrada ou atirar-me pela janela. Ou cortar-me às postas. Começo a tremer e nem dou pelo abrir da porta.
Pela fresta dois olhos pequeninos olham-me.