MÚSICA

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Fotografias: Youri Lenquette.

Sensivelmente a meio Toumani, o pai Diabaté, designemo-lo assim numa tentativa de incrementar o espírito de familiaridade, dirige-se ao público, estabelecendo uma comparação entre costumes ocidentais e africanos – “Enquanto na Europa, no Natal, se oferecem carrinhos aos filhos, no Mali, e na nossa família em particular, temos por tradição dar miniaturas de djembê e corás bebés.”. Por momentos pensei no velhinho R5 GT Turbo com que ganhava a classificativa de Fafe numa pista feita à beira mar, no Jaguar E-Type em fugas aceleradas em frente aos carros da polícia ou no Mercedes 300D que ora servia para encarnar um multimilionário do petróleo texano, ora para meter conversa com o meu vizinho do sexto andar, taxista, e que tinha um igualzinho. Naquele tempo, os taxistas eram os verdadeiros multimilionários Lisboetas. Jamais irei recriminar os meus pais por, ainda hoje, engrenar as mudanças com a mesma pujança com que se cava a terra, não foi por falta de tentativa da parte deles, nem vou pensar que se começar a desatar a oferecer miniaturas de pianos, os filhos dos meus amigos vão encarnar o espírito mozartiano. Todavia, não deixa de ser revelador que na música de Toumani e Sidiki (filho de Toumani) perpasse esta imagem tão forte de tradição, de passagem de testemunho, de herança, no fundo – um legado.

No palco do Grande Auditório da Culturgest, um pequeno estrado, duas cadeiras e, à frente destas, as corás. No primeiro tema, a solo, Sidiki dedilha as cordas, vinte e uma para ser exacto, actualmente feitas de fio de pesca, antes de pele, explicará Toumani mais tarde, com a mestria ao alcance de poucos. Introdução melodiosa, num registo suave como convite a um serão em família, em roda, a debater temas e interesses comuns. Um apontamento com um pedal ou outro que se vai acrescentando à composição. Ou seja, a tradição que se renova, que se deixa permeabilizar por outras linguagens musicais mais contemporâneas e de outras latitudes – o hip-hop ou o rock. Na entrada para o segundo tema – Toumani. Túnica em tons violeta, apoiado numa bengala, reconhecido por todos como um dos grandes divulgadores da herança musical de Bamako, a fervilhante Bamako de Salif Keita, de Ali Farka Touré, de Oumou Sangaré, e desse Mali gigante de Bassekou Kouyaté e Rokia Traoré. A herança geográfica, das ruas, dos seus sons e das paisagens sonoras. As composições sucedem-se num diálogo constante, com intervalos para mais uma explicação, para mais uma conversa, com agradecimentos à cidade de Lisboa e à melancolia do reencontro com familiares, até terminar no momento mais belo – a herança dos valores, do humanismo, com o tema Lampedusa. Uma realidade que se prefere ignorar, a de uma Europa tacanha, fechada numa pretensa superioridade civilizacional, alheia aos problemas dos vizinhos. Lembremo-nos, por exemplo, que Lisboa está mais próxima de Melilha do que Barcelona.

O legado também pode ser confronto/questionamento sobre o que temos como fundamental. Do que se perdeu, do que se pode (re)conquistar na música e como seres humanos.

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