A casa fora em tempos habitada. Famílias inteiras fizeram suas aquelas paredes, largando sem cuidado aqui e ali, memórias que agora vagueavam por lá como fantasmas saudosos.
Houve um dia que máquinas e homens juntavam forças para eviscerar o seu interior. Só ficariam as paredes mestras, as de fora, quando acabassem. Diziam que era uma remodelação mas na verdade foi antes de uma autópsia mal feita, sem cuidado, por mãos estranhas a delicadezas. Misturaram tudo, as diferentes divisões num monte de entulho sem o devido respeito ou distinção pelas suas funções dos diferentes órgãos.
Um quarto serve para dormir, uma sala de estar para estar, uma cozinha para cozinhar, uma despensa para despensar, um corredor para correr, uma casa de banho para casabanhar.
Dir-se-ia que o futuro entrara portas adentro, numa ventania reformadora, fora com o velho, viva o novo!
A tempestade já tinha passado quando a encontrei, numa noite de ruas vazias e gatos pardos. Olhei para as suas janelas sem luz, para o tecto de estrelas e para a escuridão que enchia o seu interior.
Ao longe ouvia-se o ribombar de trovões.
A escuridão tentava seduzir-me com promessas que só a escuridão pode prometer, mas eu tive medo de me perder e de não voltar a encontrar o caminho de volta e disse que não, ainda não era a minha altura para a conhecer.
Depois de virar as costas a casa continuou a perseguir-me, por algum tempo, como um cão perdido, mas as suas fundações estavam demasiado cravadas no tempo e nas memórias para ela se conseguir desprender do lastro de já ter sido.
Quando voltei a olhar, por cima do ombro, já não estava lá.