Fotografia: Vera Marmelo.
A memória é de difícil controlo e reduto intangível. Quem assistiu ao concerto de homenagem a Gil Evans por Jon Hassel, Teatro Maria Matos 2013, terá estranhado assomo de humildade e pedido de desculpas por o mesmo não lhe ter corrido como previra. No passado Domingo, no Teatro São Luíz, não se esperaria tamanho exercício por parte de Will Oldham (Bonnie "Prince" Billy), em primeiro lugar por não haver razões para tal, afinal foi um dos melhores do corrente ano, não acreditam? (quem imaginaria, que frequentador de centros comerciais de Castelo Branco sairia de lá com 190 milhões de euros no bolso?), e porque tem sempre a capacidade em nos surpreender. Uma recomendação certeira e com aviso de "a não perder". Sensivelmente a meio, perante assistência completamente rendida, e numa transcrição bastante livre – "Adoro o vosso país, a vossa cidade, o mundo, mas sobretudo não se esqueçam de ver o ciclo sobre Nathaniel Dorsky na Cinemateca".
Bonnie "Prince" Billy é amor correspondido, é paixão como estado, ebulição, é embaraço do primeiro encontro. Seja pelo jeito desengonçado a dançar, afinal não há que ter vergonha, o gesticular de braços e dedos, numa performance quixotesca, como que a desenhar os versos no ar, seja pela forma familiar com que entra de saco a tiracolo, a falar desprendidamente com o guitarrista Matt Sweeney ou com os outros elementos que o acompanham – Emmett Kelly (guitarra, voz e contrabaixo), David Ferguson (contrabaixo, voz e guitarra) e Van Campell (bateria). É-nos familiar. O primo mais velho, o amigo da escola que nos protege.
Tenha sido a primeira vez ou o recordar de concertos anteriores (Maxime, Maria Matos, Zdb, Sociedade de Geografia de Lisboa) não se falta ao encontro. Podes não acreditar em números redondos, mas alguma vez deixarias pendurada a mulher amada? São os temas que nos "tocam mais profundamente, que queremos dissecar", que fazem parte da nossa emissão de rádio nocturna e em surdina partilhar com os amigos – I See a Darkness, My Home Is the Sea, A Minor Place, Strange Form of Life, Teach Me to Bear You (co autoria com The Cairo Gang) –, são os temas mais recentes como Quail and Dumplings ou permitindo que David Ferguson trocasse o contrabaixo pela guitarra e assumisse o concerto. Impossível. Impossível não amar este tipo. Podemos encontrar justificação nas naturezas genéticas indecifráveis, os ruivos são assim, nos desejos imaturos que à força queremos concretizar, pegar em guitarra e musicar cada conto ouvido ou simplesmente seguir sugestão e caminhar por intempérie para comprar bilhete para Nathaniel Dorsky. Perpetuar um momento. A noite de Domingo. Transformar o nosso corpo em matéria de sonhos, metaforizar todas as formas reais, declarar um sentido para a nossa existência e com isso ser poeta, decifrar o enigma do lúmen e que o teu dia se torne abstracção. Encontrar sentido profundo para a introspeção e solidão. O Bonnie ouvi, ouvimo-lo. Agora Nathaniel Dorsky. Há recomendações que já são parte de ti.
* Título retirado de uma entrevista a Nathaniel Dorsky