Fotografia: Vera Marmelo.
“Cozinha sem merdas e preconceitos”
Boi-cavalo, para o meu pai, é a melhor das carnes em todo o mundo. Para mim ir a um sítio com este nome, começa logo com um isto tem de ser bom. A Rua do Vigário em Alfama tem de tudo, e é claro que ouvi Alfama é linda! entre varandins dos primeiros andares e outros impropérios que conheço mais de filmes do João César Monteiro. Sem tretas, encontro o Hugo sozinho naquilo que já foi um talho e que agora é uma sala de espectáculos de comida. O Hugo levantou os olhos das muitas contas que tinha em cima da mesa e eu respondi, onde estaciono a Bina? Uma hora depois, dois cafés e duas águas (a dele com gás) fiquei com vontade de voltar, não para conversar mas para jantar.
Mas quem é este tipo?
O Hugo Brito é um Chef de 40 anos, que estudou sociologia, artes plásticas, fez video-instalações, viveu em Veneza, foi Sous-Chef do 100 Maneiras e que este ano decidiu lançar-se no desafio de abrir um restaurante para fazer renascer o receituário tradicional lisboeta com outro Chef, o Pedro Duarte, no Boi-Cavalo Restaurante. Tem um filho e está para se casar.
Casas de comida
Restaurantes há muitos, mas para mim o curioso é como transformar um sítio de comida numa casa. Na nossa cultura comer tem uma ligação muito forte à família. Sentes que tens de fazer as pessoas sentirem-se em casa? “Um restaurante como este nunca tem a ver com nutrição, porque se tens fome não vens para aqui, com copos e códigos. Isto tem a ver com outra coisa, tem a ver com as pessoas querem ter um determinado tipo de momento, quererem ter esse tempo.” Achas que é comparável a ir assistir ao um espectáculo? “Eu acho que sim. Tu tens uma expectativa quando vens a um restaurante de autor, a gestão dessas expectativas são completamente diferentes de saíres de casa porque tens fome e vais ali à pastelaria da esquina. As pessoas criaram uma antecipação e acho que nós temos sempre a responsabilidade de, pelo menos, estarmos conscientes dessa antecipação criada. Aquele ideia quase Kantiana de a viagem já começou quando começaste a pensar nela, a refeição no restaurante já começou quando começaste a pensar onde vais jantar. As pessoas estão a construir uma expectativa e quando passam a nossa porta, tu já tens a responsabilidade de corresponder aquilo que as pessoas fantasiaram. Já começas em desvantagem, a ter de corresponder a uma expectativa e eu acho isso muito bom. Ou então tens a outra, com pessoas que não planearam, que aparecem, que entram porque o restaurante está cheio, não sabem ao que vêm, e tu tens de os recompensar pelo risco. Imagina um casal de estrangeiros que entram, a pensar que Alfama é outra coisa, sentam-se a receio e vais vendo que durante a refeição eles vão mudando e no fim têm na cara que fizeram uma boa escolha. A sensação que as pessoas sentem que descobriram um segredo, algo que não vinha nos guias, e que acabam por se sentirem especiais por terem sido elas a fazer essa descoberta. Dar isso às pessoas é muito recompensador.” Mas a comida desperta emoções… “Sim, todos já presenciámos discussões sobre comida em que as pessoas ficam iradas, e ao mesmo tempo, a maioria dos portugueses não fica irado com a última encenação do Ricardo Pais. Uma pessoa pode ficar zangada porque esta feijoada está assim ou assado, não é como a minha mãe fazia, que porcaria é esta, e no entanto as pessoas recusam-se a perceber que isto é importante, que a comida e aquilo que se come e como se come é importante. A comida move as pessoas emocionalmente, podem ficar zangados ou felizes, mas ao mesmo tempo não é uma coisa à qual se dê assim tanta importância.”
Teatro-Talho
O local do Boi-Cavalo era um talho e claramente que foi encenado, aproveitando as características anteriores e as funções actuais. Vocês pensaram muito nisso? “Partimos de uma opção prática que era, por um lado, e reportando à pergunta do amor, aproveitar o que havia. Isto tinha uma cozinha pequena e havia aqui outra mesa e a nossa opção foi abdicar desse lado económico para conseguir fazer melhor as coisas. Isso criou também um foco de atenção, um elemento cénico, que nos coloca sobre os olhos de um público, a representar um certo espectáculo. Estamos muito conscientes disso e tornou-se numa mise-en-scéne, pela escolha de certas ferramentas e processos e não de outros, para maximizar a visibilidade dos processos. Mas temos noção que isto é às vezes um bocadinho circense mas é porreiro porque faz uma outra coisa em simultâneo. As pessoas imaginam sempre a cozinha de autor como algo caro, complicado, povoado por coisas não familiares, e ver como as coisas são feitas, descontrai as pessoas. Isto é só comida, e não acho que a comida de autor seja mais importante do que as outras, são ambas importantes.” E achas que ainda há diferença entre o estrangeirismo Chef e a palavra mais comum de cozinheiro? “Há, completamente. Infelizmente a maior parte das pessoas que têm dinheiro para jantar fora, são também as que olham para um cozinheiro como um criado, e olham para um Chef como um autor. A autoria protege, quem faz arroz de pato é um criado, agora quem faz outras coisas já é um Chef. Ser Chef confere um estatuto perante o cliente que o cozinheiro não tem. Pelo menos és interpelado como um igual.”
Percursos
O Hugo fez e foi muitas coisas antes de chegar a ser Chef e tive de lhe perguntar como é que todos esses percursos o trouxeram até aqui. Como é que tudo isto começou? “Eu tive uma educadora de infância que me ensinou a ler…” (Risos. Bem isso é que foi começares mesmo do início…) “Quando entrei para a escola tive de ir logo para a segunda classe, porque achavam que eu tinha um problema de aprendizagem, mas na realidade não tinha, estava era aborrecido. Acabei o liceu com dezassete anos e aos dezassete anos um gajo não devia escolher nem a cor da camisola que vai vestir, quanto mais o curso que vai fazer. Escolher o teu futuro não é boa ideia, e então eu andava a fugir à matemática e sociologia parecia mais ou menos interessante e lá fui para a Universidade Nova de Lisboa, e odiei. Ao terceiro já só fazia extracurriculares e comecei a ficar aborrecido. Nessa altura apareceu-me uma namorada, que era artista plástica e de repente vamos à ARCO a Madrid, onde vi uma exposição do Bruce Nauman no Museu Reina Sofia, e foi uma paulada de uma violência que quase vomitei da intensidade da exposição. Eu desenhava bem mas não tinha de todo isso dentro da minha cabeça. E ali percebi que era aquilo o que eu queria mesmo fazer. Desisti de sociologia, fui para o Ar.Co em Lisboa, onde fiz desenho, depois tive uns meses em Veneza e concorri a uma pós-graduação em artes plásticas na Holanda. Fiquei lá seis anos e voltei com a ideia de que cá seria mais fácil perspectivar uma carreira, mas acabou por não ser bem assim.” Mas que tipo de artista plástico eras? “Fazia vídeos, longas de noventa minutos, sobre códigos pré-existentes tipo filmes de terror ou thrillers. Utilizava o código cinematográfico de montagem e sonoplastia mas em que não acontecia nada. Fiz um filme de uma casa vazia invadida pelo fumo, durante noventa minutos, mas com os códigos de movimento de câmara, sonoplastia e de banda sonora eram de os de um filme de terror, mas não acontecia absolutamente nada.” E cozinhar? “Tive duas vezes bolsa Gulbenkian, mas para arranjar uns dinheiros, comecei a trabalhar em cozinhas. Comecei como copeiro, mas depois um ajudante de cozinha ficou doente, eu fui fazendo saladas e coisas simples. Eles acharam que eu tinha jeito e ofereceram-se para me pagar um curso e às tantas estava a cozinhar mais à séria. Artes plásticas e cozinha, ambas em part-time. Quando vim para Portugal, achei que me devia dedicar só às artes plásticas.” Mas achas que existe uma cozinha portuguesa, ou várias cozinhas portuguesas, da algarvia à minhota? “Sim, vai sendo construida, mas começas sempre por uma identidade regional ou local e que depois com a comunicação entre as pessoas, se tornam transversais. Podem ser feitas de maneiras diferentes, tens variações regionais do cozido à portuguesa pelo país todo…”
Pergunta para o próximo artista:
“Com o que é que ficavas satisfeito?”
Observação:
Esta entrevista foi realizada no Boi-Cavalo Restaurante, Rua do Vigário 70B em Alfama, a 5 de Junho de 2014
Entrevista completa no blog Café dos Artistas