"Conheci Cassiano Branco no início dos anos sessenta, no Café Nicola, por volta da uma da madrugada, através do Gueifão Ferreira, seu colaborador (...). Fiquei impressionado pela figura do Mestre. Grande, imponente, muito bem vestido, à moda antiga, e de chapéu. Estava rodeado de amigos. Ali encontrava-se normalmente àquela hora com amigos do ideário clandestino, da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade. Artistas, homens de letras, colegas (muito poucos), gente “maldita”, suspeita e incómoda ao regime. Há quem diga, por graça, que Cassiano Branco tomava o pequeno almoço ao meio-dia, almoçava às oito da noite e jantava à uma da madrugada no Nicola. (...) Profissionalmente, Cassiano Branco dividia a sua actividade entre a Junta Nacional do Vinho (dia) e o seu atelier (noite), que era també m a sua casa. Tudo estava próximo, entre o Largo do Rato e a Rua Castilho, o que não o preocupava porque gostava muito de andar a pé. Para as grandes distâncias ou pressas, andava de táxi. Tinha mesmo um motorista amigo que, todas as noites, o ia buscar ao atelier e o levava para o Nicola." Troufa Real, Cassiano Branco, o Arquitecto da Noite, in Cassiano Branco Uma Obra para o Futuro. Câmara Municipal de Lisboa/Pelouro da Cultura, 1991, 1ª Edição, Lisboa, 60-65)
O Nosso Éden
O Café Nicola é, sem qualquer dúvida, uma parte da Lisboa empolgante, sedutora, saborosa e misteriosamente transgressora, boémia. Muito boémia. Di-lo-á qualquer alfacinha. E se calhar qualquer português. E certamente qualquer longínquo turista, daqueles que se contenta com o elevador de Santa Justa a desembocar em dez metros quadrados de velhos ferros do Eiffel e nem sonha que aquilo que ali está era um utilitaríssimo meio de transporte do sopé para a Colina do Carmo. A Lisboa viva, vivíssima, dos sessenta do século passado, ainda se fazia, muito, de noite, de madrugada, pelos cafés de sempre. O Nicola é disso a instituição.
Cassiano Branco era o maldito dos arquitectos do regime do Império e o autor de obras que marcaram a face da cidade de escala europeia. O Cinema Éden, nos Restauradores ou os incontáveis prédios de rendimento das Avenidas Novas têm (ou tinham) a sua assinatura...
Diz-se que não era de comer muito ou sequer beber demasiado e que fumava muitíssimos cigarros que ele próprio enrolava. Que era exigente e tudo tinha de ser bom. E o sítio onde jantava, à uma da madrugada, está hoje igual ao que sempre foi. Muitíssimo bom. O Café Nicola nasceu em 1789, o ano da Revolução Francesa, pela mão do genovês Nicola Breteiro e ainda hoje, volvidos mais de duzentos anos, traz o seu nome. E sempre se destacou desde a sua abertura em finais de Setecentos, pela ilustre clientela e pelas suas tertúlias de políticos e de poetas, como o ilustre Manuel Maria Barbosa du Bocage. O edifício do Café Nicola anuncia-se num magnífico piso térreo povoado pelo Café Nicola e pela interessantíssima Tabacaria Mónaco. Rezam as lendas e as histórias que a Tabacaria Mónaco, antes, muito antes, de o ser foi casa de vinhos e petiscos de um empreendedor galego que fora empregado do Nicola e que terá pago, do seu bolso, o funeral de Bocage... Bocage que, perdido, provavelmente num estado de alcoolémia avançado, na já boémia noite de uma Lisboa de há mais duzentos anos, interpelado por um guarda responde versejando: "Sou o poeta Bocage, venho do Nicola, vou para o outro mundo se disparas a pistola."
O Nicola transporta a acrescida responsabilidade histórica e cultural de ter visto o dealbar da vida literária de Eça de Queirós, que aí passava as longas tardes do estio de ananases. Diz a história que, nesse edifício, por cima do Nicola, viveu e terá tido instalado o seu primeiro e único escritório de advocacia. Com uma fachada magnífica de pedra trabalhada pontualmente, a toda a altura do piso térreo e com a inscrição Café Nicola gravada sobre os vãos que lhe servem de entrada pela Praça D. Pedro IV, o Rossio, o Nicola é um monumento. Pela Rua 1º de Dezembro, a entrada faz-se por portas de uma elegância extrema, integrada que está numa frente de rua de edifícios pombalinos, com a inelutável carga histórica da reconstrução da Lisboa do pós terramoto de 1755. São exemplo da identidade arquitectónica de Lisboa e da Baixa pombalina, de traça e construção setecentista
O café Nicola merece a visita, como qualquer monumento: está, aliás, triplamente classificado como património municipal - na fachada principal, na fachada posterior e no seu interior. O gosto de época dos mobiliários irrepreensivelmente mantidos e os dois espaços de estar em piso ligeiramente desencontrado, fazem sentir, no seu interior, a memória imaginada de tudo quanto aquelas paredes poderiam confessar se falassem.
Em 2000 o The Café Crème Guide to the Cafés of Europe, distinguiu o Nicola com o prémio Café do Ano, prémio que reconhece a excelência, qualidade dos produtos, do ambiente, do serviço prestado e da arquitectura e decoração e que distingue o espírito dos cafés europeus, que simbolizam a memória colectiva das comunidades. Basta-nos entrar no Nicola para que se apodere de nós o genuíno espírito dos cafés: os cafés de estar e ver passar, da indolência dos finais de tarde sombrios ou de noites conspirativas... As noites para que nos transporta o Nicola de sempre são tão plenas de encanto como aquelas em que, a preto e branco, cavalheiros aprumadíssimos bebem Martinis com George Clooney.
Poderia ter servido de poiso a Mies van der Rohe, arquitecto alemão, naturalizado norte-americano, autor do magnífico pavilhão alemão da Feira Mundial de Barcelona de 1929, que na primeira metade do século passado criava ambientes de uma simplicidade conceptual desconcertante. Poderia ter-lhe servido de poiso nos momentos em que acompanhava aquela sua bebida predilecta soprando faustosos e honestíssimos puritos.
O Café Nicola tem em si todo o mistério da intensa vivência cosmopolita de quem o habitou e habita, ainda. Como acontece com todos os cafés dignos desse nome - e são já poucos em Lisboa - foi a arquitectura boémia que os inventou, que os pensou, que os desenhou. Meticulosamente. Mas rapidamente deixaram de ser do seu autor e passaram a ser a casa de quem deles faz a sua casa. Servem as longas tardes de conversa, de projectos, mais conspirativos ou mais românticos, por entre capilés, cigarros e cafés. Servem os finais de manhã cheios de um sol que só Lisboa tem.
Esses espaços, verdadeiros cafés, estão longe, como muito longe está o Nicola do lounge ou do design café... O que quer que isso seja. São verdadeiros espaços de preguiça, de gosto educado e arquitectura de excelência.
Pode-se pensar. Simplesmente. Ou simplesmente nada fazer. O espaço não se impõe, deixa-se viver. Afinal, o que qualquer edifício de boa arquitectura deveria conseguir realizar. O Nicola poderá ser o palco em 2019 do pacto de amor eterno entre Deckard, que deixara de ser Blade Runner e Rachel. «Do you love me? I love you; Do you trust me? I trust you». Talvez, também por lá encontremos quem faça unicórnios em origami... Afinal, como muito bem se dizia na grande escola de Arquitectura que foi Bauhaus "God is in the details".
Artigo publicado na Umbigo #23