A Mão que Embala o Berço
Gottfried Helnwein é daqueles casos óbvios de atracção ou repulsa. O artista austríaco produz imagens em formato de desenho, pintura e fotografia espectacularmente encenadas e simultaneamente chocantes ao mero mortal. As intenções são visíveis: uma procura por resultados de impacto e reacção no público e na sociedade. Não se consegue ignorar e afastar o olhar.
Helnwein cresceu e estudou em Viena, num ambiente pós-guerra descrito pelo mesmo como um autêntico "horror" sombrio. A infância foi marcada por um clima negro de desespero, em que os adultos eram feios e rudes, falavam pouco. A ruas eram vazias e sem cor, com destroços da guerra. Estas foram imagens que o autor guardou e que determinam a construção primordial da sua visão do mundo. O conjunto da sua obra consiste maioritariamente em fotografias - algumas manipuladas digitalmente - assim como poucas performances que centralizam um estudo em volta da ansiedade social e psicológica. Uma abordagem pictórica a tópicos históricos e políticos que retratam fragilidade, educação (ou falta dela), religião, exploração dos media, etc... O produto constitui retratos de seres humanos num contexto de crise. O resultado é provocador e controverso. Mas assim é a condição humana que o autor opta por apresentar.
As imagens de crianças feridas (a um nível físico e psicológico) são metáforas evidentes para problemas sociais maiores. Alertas para o estado do mundo e para reacções a eventos tão marcantes quanto o Holocausto e a instabilidade emocional que persiste nas gerações vindouras. Trata-se de uma lupa que amplia o espectro e a raça humana em toda a sua dimensão; para o bem e para o mal, não existem restrições. Em trabalhos como The Child (2004) existe claramente uma ruptura com a ideia de inocência ou perseverança de vida sem dor.
Para Helnwein a dor faz parte da arte, e arte sem a existência de perda ou sacrifício é provavelmente um conceito desconhecido. Tem de existir confronto, suscitar um sentimento no observador, criar uma contra-reacção de inspiração ou impacto emocional. As imagens retratam precisamente a violação de valores morais, sociais e políticos. A exploração da dor e agonia é explícita e encenada como ponto de partida para trabalhos conceptuais arrojados, onde o expressionismo corporal é amplificado através do uso de iluminação rigorosa, ou de tons cromáticos subtis que visam acentuar uma atmosfera por vezes fria, outras meramente dramática ou quasi-teatral. A ironia patente em algumas peças é simbólica e ávida em crítica, Helnwein abre um diálogo com o observador em que a primeira palavra é sua, marcadamente hiper-realista e pujantemente objectiva, deixando depois na mão do público uma resposta para este desafio.
As personagens que figuram nas obras de Helnwein variam em idade e género, mas o denominador comum é a constante partilha de um universo onde a mensagem fala mais alto, rasgando a pele dos intervenientes num apelo por ser lida, ou quem sabe até salva e protegida. Afinal, em grande parte, os modelos são crianças, a fórmula mais pura e receptiva a inputs exteriores. As crianças simbolizam melhor a humanidade que os adultos. E no mundo das crianças não existem limites, a imaginação é a palavra de ordem, tudo é possível. Este pode ser um dos motivos de fascínio de Helnwein por crianças: a magia da psique livre e despreocupada.
A grandiosidade de ser criança é o estádio de proximidade com a arte, em constante rotação. E uma vez submetida ao processo de educação, o molde é quebrado. A magia extasiante da criança passa da epiderme para o campo do racional. O processo de intelectualização congela as emoções. Tal como vemos no mundo adulto. Tal como as crianças olham para nós através dos quadros.
A incorporação destes conceitos ganha sentido no uso que o autor faz de instrumentos cirúrgicos, ligaduras ou outros utensílios derivantes de uma era praticamente medieval que se instala nos indivíduos fotografados para arrancar a toda a força a atenção do observador nem que para isso tenha de chocar ou sensibilizar o mais reservado. Em alguns casos remete instantaneamente para a estética cinematográfica do famoso fetichista do corpo David Cronenberg.
A comunicação de Helnwein não se restringe a normas de aceitação nem assume compromissos, seguindo de forma particularmente identificável uma linguagem onde abunda a perda de inocência, questões relacionadas com a exploração da imagem pela publicidade e a iconografia do universo infantil (Mickey Mouse e Donald Duck figuram em algumas montagens) que exerce poder e vincula mentalidades, criando padrões que se carregam desapercebidos e repetem até à idade adulta. Existe claramente uma preocupação do autor com o ambiente circundante ao crescimento e maturação de uma criança no seio da revolução tecnológica e de um constante ataque de lixo visual. As faces fotografadas por Helnwein choram, dormem, são atentas, têm sentimentos. Relembram-nos de como é ser humano.
Grande parte da sua carreira tem sido um protesto contra os vestígios do Nazismo e do Catolicismo repressivo existente na Áustria e na Alemanha, onde as tradições se parecem mesclar. Tal como Helnwein alerta para as consequências da guerra, discriminação e violência, a posição do artista é igualmente a de causador de impacto e reacção. A cristalização desta dicotomia são as próprias crianças fotografadas e manipuladas de forma ficcionada mas violenta, fazendo da mensagem o próprio catalisador. As figuras aparecem assustadas, mortas, deitadas e usadas como bonecos, mas sempre num contexto real, com uma atitude provocatória e de culpabilidade do observador como agente principal pelo estado apresentado.
Talvez por consequência directa deste estudo sobre o modernismo, a arte de Helnwein provoca uma imersão num estado de dormência e silêncio. O mesmo efeito se vê retratado nas pessoas fotografadas, que permanecem intemporalmente num estado de alienação. As fotos são a materialização de um estado interior que suga a percepção do observador, sendo assim difícil permanecer indiferente aos estados causados pelas fotografias que demonstram um efeito de espelho dos sentimentos suscitados ao observar as mesmas.
Mais difícil ainda é escapar, quando as telas usadas para expor alguns trabalhos chegam a ultrapassar os nove metros de altura (Selektion, 1988) obrigando o observador a olhar de frente - com o corpo inteiro - e a ser também observado pelo impacto extremo da estética de realismo documental. As atrocidades patentes nestes trabalhos transformam a encenação conceptual num autêntico ensaio reflexivo sobre a fragilidade do ser humano perante a austeridade de sofrimentos instalados no corpo social, nomeadamente no que diz respeito a diferenças de raças e etnias.
Helnwein faz do seu trabalho um autêntico ataque directo à liberdade pessoal em justaposição com um estilo marcadamente despido de qualquer enclausuramento ou conformismo. O que se vê é o que está na tela. Mas a mente não vê somente uma face ou um corpo abandonado, vê também solidão, indiferença, racismo ou fragilidade. Helnwein insiste em mexer na ferida e lembrar-nos dos danos causados.
Artigo publicado na Umbigo #23