Fotografia: Pierre Gonnord.
“Porque gosto de pessoas e gosto de histórias”
Tanto é o vermelho no Jardim da Parada em Campo de Ourique, a mesa e as cadeiras do café, a minha bina, o Alpha Romeu estacionado em frente, e a t-shirt do convidado, que tudo me parece um quadro de explosão cromática solar, com a cara sorridente do Herberto (o convidado) ao centro. Nunca me arrependi de uma conversa com este grande homem negro de quase dois metros. Aberto, disponível, curioso sobre todos os temas da nossa humanidade, perguntador e sobretudo interessado em conversar, não só comigo mas com todos os seres curiosos com que se cruza. O Herberto é um conversador nato e, por curiosidade, descobri que o vi pela primeira vez num espectáculo no Teatro da Trindade, fazia de anjo e transportava o corpo da Julieta no final. Ele é isso, uma espécie de anjo deslizante ou um demónio perguntador de ideias. Nesta conversa, um de nós será o herói e o outro o anti-herói, mas só nesta conversa, que pelo menos para mim no resto do tempo, o Herberto é o melhor fotógrafo que conheço.
Mas quem é este tipo?
O Herberto Smith é um fotógrafo storyteller de 39 anos, nascido em 1974 na Guiné Bissau, adolescente em São Tomé, de onde são os seus pais, e muitas coisas já em Portugal. Foi modelo fotográfico, participou em peças de teatro, fotografou catálogos para a indústria de cerâmica, mobiliário de escritório, moda e pessoas na rua. É casado e tem dois lindos filhos, que também fotografa regularmente.
As viagens da origem
O Herberto nasceu num sítio, passou para outro e acabou por aterrar em Lisboa. Conta-me lá essa história. “Antes da independência, os meus pais, que eram funcionários bancários, estavam a trabalhar na Guiné-Bissau e conheceram-se lá. Daí sai eu com cerca de três meses, nem me lembro de nada, e passei a minha adolescência toda em São Tomé e Príncipe, de onde eles eram, e depois vim para cá com dezoito anos. A minha formação como pessoa foi toda feita lá.” Tens saudades? “Eu tenho saudades mas é mais por questões familiares, sinto falta de algumas pessoas. Mas a minha ligação com São Tomé é a mesma que tenho com África, sinto-me cada vez mais um africano, do que especificamente só são-tomense. Mas quem eu sou hoje e a energia que eu transporto tem a ver com o crescer lá, sou uma pessoa calma, um bocado introspectiva, às vezes melancólica, tudo isso tem a ver com a energia que eu absorvi. Cresci numa ilha e aspirava a outras coisas maiores, cresci muito próximo do mar, a minha casa era a cinco metros da praia. Mas o meu perfil psicológico sempre foi um bocado à margem, não me identificava muito com algumas coisas, eu tinha um lado mais poético, e ali as pessoas vivem de outra maneira. Provavelmente eu tenho um espírito muito são-tomense, mas a forma como vejo mundo é diferente, mais abrangente.” Mas e se tivesses de dar um nome à tua nacionalidade? “Eu acho que não tem nome, é uma mistura de influências. Sempre fui muito curioso e sempre li livros um bocado avançados para a minha idade, até era um stress que tinha com o meu pai, que não gostava que eu mexesse nos livros dele. Quando era pequeno lia livros relacionados com psicologia, filosofia, tudo o que me explicasse melhor a natureza humana, porque agimos assim e pensamos de determinada maneira, isso é um dos meus maiores interesses.”
Herberto Smith by Pierre Gonnord
Retratos
Mas de todas as formas de fotografia que já experimentaste, qual é a que sentes mais próxima do contar das histórias, qual é a tua preferida? “Retrato, gosto mais de fazer retratos. O que me cativa é a interacção, a relação com as pessoas. Ultimamente, tenho desenvolvido uma série de retratos que não são propriamente programados, são retratos casuais. Eu ando na rua, encontro pessoas e tento convencê-las a deixarem-se fotografar por mim. Começa por uma abordagem física, exterior ou estética, mas também há uma componente energética ou metafísica, que me vai apurando os sentidos. Cada vez mais acerto nas pessoas que eu fotografo porque encontro histórias, que de uma forma ou outra têm a ver comigo.” Como se intuísses a história por detrás da cara? “Sim. Tem a ver com a psicologia e a natureza humana, e acaba por ser um exercício. Cada vez mais as pessoas afastam-se e vivem nas redes sociais e não interagem umas com as outras. Para mim, isto é uma forma de quebrar essa barreira e interagir com pessoas. Geralmente quando vou falar com elas, o que as faz sentir confortáveis, é o entusiasmo que eu manifesto para as fotografar e lhes explico o que quero fazer. Depois há essa troca, nem sempre as pessoas aceitam a primeira, tens de as convencer e mostrar o que queres fazer. Honestamente, há um lado generoso, quando fotografo as pessoas, quero sempre apresentá-las de forma digna, o mais dignamente possível. Não é fotojornalismo, se eu tiver de fotografar a miséria eu vou tentar encontrar um lado digno e humano.” És um humanista, então? “Sou mesmo muito. Sou uma pessoa muito sensível e acho que consigo transmitir isso às pessoas, que de uma forma ou de outra acabam por baixar a guarda.” E o teu retrato? O que usas no perfil de facebook, feito pelo Filipe Alves da Silverbox, retrata-te? “Sim, gosto dos dois. Há um que tenho o rosto para baixo e outro que estou de perfil. Gosto, porque tem uma certa crueza na imagem, e cada vez mais é o que eu sinto que tenho vontade de fazer quando retrato as pessoas. Claro que vou respeitar a pessoa retratada, não quero que ninguém apareça mal ou que não goste de se ver na imagem, mas quero que haja sempre uma certa crueza. Porque cada vez mais, por influência da fotografia de moda, as fotos são muito retocadas, toda a gente fica pós-produzida e eu não gosto disso. Mas também tem a ver com o exercício de auto-aceitação, que eu como toda a gente, tenho problemas de auto-aceitação e sou muito crítico em relação ao que eu faço.” Uma das coisas que gosto nos teus retratos é a visão dos poros da pele, que todos temos, mas que até os filtros maquilhadores do Instagram tiram. Achas que isso vai mudar, essa uniformização das pessoas? “Eu acho que sim, que se irá inverter, porque gera tanta ansiedade as pessoas quererem ser perfeitas e protegidas, que irão deixar de aguentar. As pessoas terão de voltar a interagir com a sua realidade.”
Futuro heróico
Um homem humanista e sonhador, tão preocupado com a dignidade humana, como o Herberto merece a million dollar question: És optimista em relação ao futuro? “Sou. Parece muito óbvio, mas não está na moda ser optimista. Mas eu não consigo estar de outra maneira. É claro que tenho momentos em que me sinto mais perdido ou meio deprimido, mas não gosto de estar nesse estado e arranjo sempre formas de dar a volta. O que me move é a esperança de um dia melhor.” E tens heróis? “Eu também questiono muitas vezes. Eu nunca fiz muito o culto de personalidades, nunca segui ninguém. Tenho muitas referências, leio muito, mas para mim os heróis são as pessoas que vou encontrando no dia a dia e que lidam com os problemas reais. Não são as pessoas do facebook mas as pessoas que vou encontrando na rua, que me inspiram. Desde a minha família, a outras que vou conhecendo ao longo do percurso. E também temos que nos lembrar que as histórias das pessoas que só vemos nas revistas, ou na televisão, são histórias editadas, nunca sabes como é que as coisas são mesmo.” Mas falta o heróico sobre o fã? “A nossa sociedade tem um processo de fã, muito rápido, cada vez mais mediático, mas é muito virtual porque hoje em dia as pessoas já não perdem tempo para trabalhar uma coisa. O sucesso quer-se imediato, querem que as coisas aconteçam logo a seguir e eu não acredito muito nisso. Até para perceberes melhor as referências que tenho vou mandar-te um link com o histórico dos livros que tenho lido.” E tu também és herói, ou cometes actos heróicos? “Sim, eu sou o meu maior herói. Reconheço isso em mim, ainda hoje li uma citação do Joseph Campbell que dizia mais ou menos isso. A tua missão é trabalhares para ti próprio, e se fizeres isso bem, isso transmite-se aos outros. A minha missão não é salvar o mundo mas é salvar-me a mim próprio, da melhor maneira possível, e contagiar os outros durante esse percurso.” Mas as pessoas podem ser heróis, sendo egoístas? “Eu acredito que sim. Tomando-me como referência, é mais difícil ajudar os outros se eu não me conhecer a mim próprio, e esse caminho e as coisas que vou fazendo. É preciso haver uma generosidade, também, e não ser demasiado narcisista, as coisas que faço têm a ver com auto-descoberta, e serei muito mais útil aos outros a partir do momento em que me descobrir melhor.”
Deixa-me aí uma pergunta para o próximo artista…
"O que é que te move?"
Observação:
Esta entrevista foi realizada na esplanada da Rés Vés Gelataria, em Campo de Ourique a 4 de Junho de 2014. Queres saber mais sobre o Herberto e outros artistas? Conversas completas no blog Café dos Artistas.