JOALHARIA

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O ateliê de Teresa Dantas é um microcosmos onde podemos encontrar, à semelhança de uma enciclopédia, um sem-número de coisas que o Homem produz, e que vai coleccionando de maneira despreocupada e não sistemática. Digo coisas porque, deslocadas e fragmentadas nesse espaço, perderam o princípio para que foram criadas e vivem num estado de espera, da eminente oportunidade de serem resgatadas ou devolvidas ao mundo. Entre estatuária africana, provavelmente oriundas de Moçambique, onde nasceu, espalhada pelo chão e pelos espaços intersticiais do mobiliário, a um herbário de páginas soltas, umas aqui outras ali, a milhares de objectos que se sobrepõem, como layers de uma edição Photoshop, que parecem querer emergir à superfície, reclamando atenção para si. Um punhado largo de pregos do século XIX que enchem um prato, encimado por bonecos, que repousa sobre caixas com outros materiais, pousados sobre livros em cima de uma cadeira, sob a qual é aproveitado o espaço livre para outras coisas. O resto dos pregos está noutra embalagem, guardado para depois. Não escapa o facto de Dantas ter formação em restauro, fruto desta actividade profissional que mantém, a recolha de materiais e objectos seja uma actividade contínua, uma espécie de actividade paralela, um arquivo, ao qual recorre para construir as suas peças. Não obstante reconhecermos esses objectos, ou as suas origens, que Dantas recolhe, recorta e junta a outros, digo a outras partes de outros objectos, somos surpreendidos com resultados desconexos, frequentemente hilariantes onde, por exemplo, a pata de um crustáceo encontra outra parte de um pequeno boneco de peluche, ou um dente de porco, ou outra coisa ainda mais inesperada. Dantas promove o incongruente.

Vista à luz da produção em joalharia contemporânea no panorama nacional, Dantas é um caso isolado e, fruto de uma produção morosa e relativamente pequena, também porque participa em poucas exposições, até aqui por solicitação ou concurso, como é exemplo o Premio Fundazione Cominelli em 2012, o seu trabalho tem uma visibilidade escassa, mesmo entre colegas joalheiros.

Talvez por esta razão os seus objectos ganhem um carácter mais misterioso e individual, encriptados num imaginário próprio, difícil de descodificar, frequentemente próximo do imaginário surrealista, que a artista não confirma nem desmente. Na procura de uma estratégia que reúna algumas preocupações pessoais, diz-nos: “Gosto de fazer esculturas ou peças tridimensionais que se possam transportar para o corpo ou servir como acessório, criar a ilusão que possa ser uma peça de joalharia... Por exemplo, esta peça desmonta-se e parte dela pode ser usada como joalharia, mas essas peças voltam a juntar-se para serem um único objecto. Gosto de dar mais que uma solução à peça, de não a limitar a uma única função”. Por vezes o mesmo objecto, que parte de um desenho com carácter de estudo, é uma escultura que se desmonta para que um desses módulos seja passível de ser usado como acessório no corpo.

Dado estes planos desdobrados – o desenho, o objecto que se desmonta, a peça de joalharia, e quando lhe pergunto sobre como pensa na montagem de uma exposição, na reunião dos vários objectos no mesmo lugar expositivo, e também na validade dos desenhos esquiva-se, justificando-se dizendo que “...para já não estou a pensar em como apresentar, estou a construir...”. Digamos que parece sentir-se responsável por uma tarefa interminável, a infinita possibilidade de promover um encontro entre aqueles materiais vizinhos, vindos de muitas partes diferentes, tempos e lugares, uma preocupação ou necessidade eminente, contínua.

Tem sempre uma narrativa para os seus trabalhos e cada peça conta uma história, mas Dantas evita dizê-lo, não a oferece ao público, deixando para o usufruidor a tarefa de descodificar aquilo que tem entre mãos. Ainda assim, nas peças que se assumem jóias, tem a preocupação de cruzar as formas e os materiais com o cuidado técnico e funcional do objecto e mantém essa característica visível, desejável.

A técnica é um componente importante e o metal é o esqueleto que segura a soma das partes de uma jóia fabricada por Dantas.

Sobre uma possível colaboração com a indústria, gostaria de desenvolver ideias para objectos funcionais em prata, de dimensões grandes, desenhando peças em parceria com os nossos industriais.

Mantém desde a formação inicial em pintura, a prática do desenho que usa para apanhar formas, que posteriormente desmembra para pensar os objectos tridimensionais, talvez fazendo um ping-pong entre o que encontra no ateliê e o dia-a-dia nos espaços do restauro, nas igrejas e casas antigas onde trabalha, e o desenho e o inverso. Sobre regressar à pintura, diz ser possível quando tiver mais tempo e espaço para se dedicar ao trabalho pessoal, mas assume a preferência pelo tridimensional e revela que, ainda no curso de pintura em Bruxelas, preferia trabalhar sobre estruturas de gesso.

Nas peças que vai mostrando, durante a nossa conversa, existe um grande léxico operativo que nos revela o cruzamento de conhecimentos que foi adquirindo ao longo dos anos, na aprendizagem académica e da experiência profissional, e confirma a minha suspeita que Dantas é um palimpsesto, um composto de estratos.

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As imagens acima mostram dois projectos recentes. As imagens 1 e 2 , A pão e água, projecto desenvolvido no ciclo de estudos na Escola Superior de Artes e Design, onde explorou ideias e materiais relacionando o consumismo na contemporaneidade e os campos conceptuais da Arte Povera. Os materiais que constituem as peças são em pão fabricado pela própria ou adquirido, peixe seco, osso fossilizado, boneco de peluche, ouro. As imagens 3, 4, 5 e 6 evidenciam a relação existente entre a produção de objectos tridimensionais e o desenho, neste caso recorrendo a fio de juta para fabricar a peça, projecto que participou na exposição Noc Noc, incluída no programa oficial da Guimarães Capital Europeia da Cultura, em 2012.

Nota biográfica:

Nasceu em 1965 em Climane, Moçambique. Estudou pintura na Enseignement Superieur Artistique de Plein Excercice de Type Court, no Institut Saint- Luc em Bruxelas; terminou o curso tecnológico de ourivesaria na Escola Soares dos Reis, no Porto; estudou Conservação e Restauro em Cerâmica e Azulejos na Universidade Lusíada; é licenciada em Conservação e Restauro do Património na Universidade Portucalense, Porto; pós-graduou-se em Design de Joalharia na Escola Superior de Artes e Design (ESAD) em Matosinhos e defendeu em 2012 o relatório de projecto UM PROJECTO PARA UMA ABORDAGEM CRÍTICA AO CONSUMO - Da metamorfose significante dos materiais na Arte Povera à sua reinterpretação em joalharia artística, para abordar criticamente a sociedade de consumo, do mestrado em Design de Produto e Interface da ESAD, em Matosinhos, sob orientação da Prof. Ana Campos, docente naquela instituição.

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