CINEMA

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Sempre que pensamos em singularidade tecnológica ou inteligência artificial, pensamos em naves espaciais ou robots japoneses em forma de cãezinhos para quem não quer a dor-de-cabeça de os levar à rua e apanhar os seus excrementos. Trocar o real pelo artificial, portanto. Mas se o artificial foi feito por nós, quão artificial é? Se fomos nós que os criámos, o receio de estes ultrapassarem-nos em termos de inteligência não é redundante? Não estaríamos a ultrapassar-nos e a insurgir-nos contra nós próprios? Quando o HAL 9000 de 2001 desobedece a uma ordem de Dave, não é a própria humanidade a desobeder-se a si própria? Não tenho resposta para nenhuma destas perguntas, mas parece-me pertinente que sempre que o tema inteligência artificial é tratado, no cinema ou onde quer que seja, olhemos para o resultado (pensem no cãozinho robot) como se olhássemos para um objecto externo, para algo dissociável, quando o facto, não querendo tornar isto demasiado metafísico, é que estamos apenas a olhar para nós próprios.

Her e o seu criador, Spike Jonze, olham para o assunto de forma desarmadamente simples e, ao mesmo tempo, completa, numa história de amor sobre um homem e uma máquina que se apaixonam e crescem juntos. É óbvio que nada neste filme resultaria se a personagem do homem, representando aqui a humanidade, como um porta-voz da nossa imperfeição, não fosse um indivíduo profundamente tímido, passivo e socialmente limitado, e precisamente por isso capaz de níveis de empatia e identificabilidade raros. O Theodore de Joaquin Phoenix é o molde de toda uma espécie que evoluiu de tal forma que as suas necessidades físicas, intelectuais e emocionais chegaram a um estado de desequilíbrio impossível de suportar, que se traduz numa dificuldade inexplicável de existir, quando existir deveria ser a coisa mais simples do mundo. É escritor, porque estas pessoas tendem a fazer isso, e o seu trabalho consiste em escrever cartas de amor personalizadas – porque é perfeitamente credível que no futuro o acto de expressar amor e afecto por escrito se torne num negócio viável. Tendo em conta que está a tentar ultrapassar uma separação, acaba por ser uma ocupação estranhamente adequada e ao mesmo tempo prejudicial ao seu bem-estar emocional.

Theodore está, no fundo, como tantos antes dele, preso no tal estado de desequilíbrio (curiosamente, não há nenhuma referência ao uso de medicação, talvez Jonze o tenha evitado ou simplesmente ignorado), num deambular entre apatia e tristeza, passando grande parte do seu tempo desligado de outros seres humanos e preferindo a companhia do seu telefone ou de videojogos onde encontra refúgio e distracção. Até que um dia surge um novo Sistema Operativo e Theodore, como bom techie que é, se agarra a ele com unhas e dentes. Instala-o, sem antes se submeter a uma série de perguntas, qual psicanálise futurista, sobre a sua personalidade, relação com a sua mãe e, principalmente, se prefere uma voz masculina ou feminina. A resposta é, obviamente, a segunda, e não tarda até que Samantha se apresente, na voz doce e convidativa de Scarlett Johansson, e a solidão de Theodore se comece lentamente a diluir.

Spike Jonze filma os seus universos – e os de Charlie Kauffman, colaboração passada que ficará de certo para a história como uma das mais produtivas e estranhas – de forma muito única e visualmente rica, e essa riqueza apenas se acentua ao realizar as suas próprias histórias. Os tons pastel, os vermelhos brilhantes e os lens flares tornam Her mais bonito e peculiar, porque tornam, mas nunca de forma enfadonha ou forçada, podendo o mesmo ser dito do elemento de futurismo presente em toda a narrativa, com o qual Jonze se sente perfeitamente à vontade – a estética é futurista, mas apenas realisticamente futurista. O mundo em que Theodore vive não é assim tão diferente do nosso, situando-se antes ali no futuro-que-está-para-vir-mais-dia-menos-dia, só ligeiramente à frente do nosso em termos de tecnologia, evitando assim grandes efeitos especiais e alguma possível alienação.

O debate da inteligência artificial e da possibilidade desta implicar consciência e sentimento não é resolvido aqui, e provavelmente nunca será, como qualquer boa questão filosófica. O cerne desta lindíssima história acaba por ser, mais que a nossa necessidade de ser amados ou qualquer outra frase bonita, a forma como projectamos nos outros aquilo que nos convém. Theodore tornou-se mais e mais desligado da mulher porque a sua ideia daquilo que o casamento seria se quebrou, porque queria uma esposa feliz e carinhosa sem a bagagem emocional que qualquer pessoa traz para dentro de qualquer relação. Samantha personaliza uma ferramenta que o ajuda a ultrapassar uma fase difícil, a equilibrá-lo, projectando nela os seus próprios sonhos e sentimentos. Se Her é ou não, como se tem especulado, a “resposta” de Spike Jonze a Lost in Translation, de Sofia Coppola, lançado há dez anos aquando da separação destes, não é importante, mas a compração entre os dois filmes tem muito a revelar sobre a diferente forma como homem e mulher lidam com o fim de uma relação – ou com o próprio conceito de “fim”.

Theodore e Samantha comportam-se como qualquer casal: brincam, riem, provocam-se, zangam-se, exigem. E a partir daí a questão torna-se em até que ponto serão as suas emoções reais? Se te estás a apaixonar por “algo” criado especificamente para as tuas necessidades e desejos pessoais, a procurar, hedonisticamente, o que não encontras num ser humano com as suas próprias necessidades e desejos, tão validos quanto os teus, estás a amar? Quando HAL desobedece ao seu mestre humano Dave, ultrapassando assim a sua programação, torna-se, no mesmo momento, o maior triunfo e simultâneo fracasso da humanidade. Theodore entrega a sua essência enquanto humano a uma máquina e recebe de volta compreensão e afecto. Tudo isto para dizer que, vá o futuro por que caminhos for (HAL ou Samantha), a interacção (humano-máquina ou humano-humano) será sempre onde triunfaremos e falharemos como criaturas grandiosas e desastrosas que somos.

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