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Fotografias: António Néu.

Foi a primeira vez que fui à Madeira, uma estreia absoluta que me surpreendeu a vários níveis. Não só pelos inúmeros furados, termo usado pelos madeirenses para designar os túneis que percorrem a ilha e que alteraram completamente a mobilidade. Surpreenderam-me também o facto de as casas serem construídas ao longo de ribanceiras, o que nos coloca várias questões, entre elas o acesso.

Como é que as pessoas conseguem chegar a casa? Todos estes factores se referem à paisagem e à sua alteração e adulteração. Este é um dos motivos de “A Duas Velocidades”, uma exposição na Casa das Mudas que resultou da tese de Duarte Santo, onde está reflectida a paisagem na Madeira. Para a celebrar vários artistas foram convidados a mostrar os seus pontos de vista: Yonamine, Bernardo Mendonça & Tiago Miranda, Hugo Olim, Lucília Monteiro, Luísa Cunha, Miguel Palma, Ricardo Barbeito e Rigo.

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O ponto de partida para a exposição foi a tese de Duarte Santo A Duas Velocidades – Paisagem e Turismo na Madeira entre a Via Rápida e os Miradouros. Em 2008, Duarte realizou um mestrado em arquitectura da paisagem na Universidade da Catalunha.

A sua tese levou-o à exposição que nasceu a partir de um cruzamento de ideias de dois amigos de infância: Duarte Santo e a curadora Sílvia Escórcio. Duarte nasceu na Madeira e é na ilha que tem as suas raízes. Depois de sair e explorar temas como a paisagem e o fenómeno do turismo enquanto produtor da mesma, a tese desenvolveu-se com a premissa de que tudo é paisagem. O que também estava implícito no estudo foi a exploração das múltiplas experiências. Se a paisagem é uma interpretação que vai do físico ao mental, a experiência tem também essa condição e o turismo enquanto fenómeno experiencial.

O trabalho foi desenvolvido em três eixos e construído quase como uma viagem. Era importante que a tese não ficasse confinada às prateleiras de uma biblioteca porque é de interesse geral e tem uma abordagem poética sobre os temas que ele desenvolve.

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Um “case study” de uma ilha que sofreu uma transformação comum em muitos espaços geográficos. Assim se parte para a exposição que abrange um colectivo de artistas com expressões completamente diferentes, interceptando nomes consagrados com artistas emergentes. Outra prioridade residia em ter artistas madeirenses no projecto.

O processo de selecção foi crucial, acabando também por ser um pouco intuitivo. “Quando pensámos na abordagem da velocidade e da máquina em confronto com a paisagem, pensámos logo no Miguel Palma. Era uma escolha obrigatória e foi uma honra trabalhar com ele e concretizar um dos seus ‘brinquedos’. Um desafio absurdo que deu imenso prazer” revelou Sílvia. Também Rigo era obrigatório, o artista da Madeira per si, e que apesar de ter uma dimensão universal, apresenta-se sempre como um madeirense em todo o mundo.

Yonamine acabou por ser uma descoberta interessante. “Ele nunca tinha vindo à Madeira e queríamos cruzar linguagens. Foi uma escolha interessante devido à própria cultura, estado de espírito e conhecimento na interpretação da paisagem nova. Quando aterrou, disse logo que lhe fazia lembrar a América do Sul. Ele já viajou por quase todos os países do mundo e chamou à Madeira uma favela chique. Eu corrigi-o logo dizendo que na Madeira se diz fina, logo é uma favela fina”. Antes de chegar, Yonamine queria trabalhar o porco e queria saber as tradições do mesmo na ilha, pois o prato que se come no Natal é a carne de vinha d’alhos. “Yonamine passou por todo o processo: matou o porco, descarnou-o e a minha tia cozinhou-o”, acrescentou Sílvia.

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Inicialmente, Duarte e Sílvia levaram os artistas à Madeira (o que foi muito complicado a nível logístico) e colocaram-nos em contacto, pois a contaminação era fundamental. “A confrontação era muito importante porque há madeirenses que são de cá e vivem cá, outros são da ilha, mas vivem fora e outros que foram para fora e já voltaram”, contou Duarte Santo. Nesta fase surpreenderam-se com algumas coincidências como o facto de Miguel Palma ter feito o primeiro ano de faculdade na Madeira e de Luísa Cunha ter vivido onze anos na ilha com a profissão de professora. Foi na Madeira que teve uma epifania ao aperceber-se que não conseguia viver só das palavras, que precisava das imagens. Deixou o trabalho e foi para Lisboa trabalhar como artista plástica.

A viagem iniciou-se com uma visita curatorial. Duarte e Sílvia alugaram um autocarro e fizeram o percurso por toda a ilha, pela via rápida. Os artistas conheceram o espaço de exposição e deliciaram-se com a gastronomia tradicional durante uma semana. Quanto ao briefing, consistiu nas conclusões da tese de Duarte e o desafio em termos curatoriais prendeu-se com a elaboração de instalações site-specific. “A Casa das Mudas é emblemática, não podíamos ambicionar outro espaço na Madeira. Fica no fim do percurso da via rápida e é fabulosa do ponto de vista arquitectónico, um excelente trabalho do arquitecto Paulo David, também ele madeirense”, disse Sílvia. É preciso salientar que os artistas não se conheciam e houve uma óptima interacção, “uma empatia completa. Continuamos a trocar impressões e foi uma experiência muito estimulante”, contou Luísa.

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No início desta viagem, os artistas estavam sem qualquer ideia em relação ao trabalho que iriam desenvolver. O impasse atormentou-os até que surge a luz ao fundo do furado e as ideias começaram a despoletar. Ao aterrar, Luísa Cunha apercebeu-se de que o tempo estava capacete, o que em linguagem madeirense significa nevoeiro. Para ela era toda uma tela de cinzento sobre cinzento. “Fiquei fascinada e surgiu-me logo a imagem de uma tela minimal que eu poderia habitar da forma que pretendesse”, contou. A artista reparou também que desde a sua última visita, a construção tinha aumentado imenso, numa proliferação de casas montanhas acima. Sentia-se observada por milhares de olhinhos, como se as casas fossem faróis. Metaforicamente apeteceu-lhe sacudir a toalha pois “era um excesso para mim, só pensava onde estariam as montanhas e o verde”. Luísa quis representar a tela e a paisagem onde se encontrava. “Por isso resolvi fazer um vídeo, porque era uma segunda projecção: a do meu olhar perante a paisagem”.

Bernardo Mendonça e Tiago Miranda não vêm do mundo das artes e sim do jornalismo e fotojornalismo. Para Sílvia foi importante convidá-los para um projecto em que uma das premissas consistiu na transdisciplinaridade, “de trazer criadores que não se relacionam nos meios convencionais artísticos. Eles não estão tão contaminados”.

A dupla acabou por fazer uma espécie de foto-romance para a exposição, passando a relação com a paisagem para as pessoas, para os anónimos que encontraram nas paragens que fizeram. Estimulou-os o facto de terem carta-branca para fazerem o que quisessem, mas a viagem curatorial prendeu-lhes os movimentos. “Nós estamos viciados na procura de histórias e no terreno” e o autocarro não o permitia.

Começaram a pensar: “Dentro do autocarro é como se estivéssemos dentro do televisor a ver o pessoal na sala de estar. Começámos então a fugir à rota e decidimos ir para a estrada. Vamos apaixonar-nos pela estrada antiga e descobrir as pessoas desta ilha porque a via rápida é muito dura, rápida e sem histórias”, contou Tiago Miranda. A via rápida tinha 60km, ao passo que a regional era gigantesca. Eles queriam acima de tudo contar histórias e por isso a escolha do percurso pela regional a pensar que muitas vezes a realidade ultrapassa a ficção. Estiveram uma semana a dar a volta a ilha em busca de histórias, pois houve várias que não deram em nada.

O objectivo final materializou-se num conjunto de postais com uma fotografia e uma história no verso que foram expostos num escaparate. À excepção de uma história que foi exposta numa grande fotografia com o texto ao lado: “A Mulher Bala”. Num dos inúmeros percursos pararam num restaurante de beira de estrada japonês. Foi lá que viram a figura da Rita e acharam que era um travesti. O que por si era muito insólito. Segundo Bernardo“ o que faria um travesti musculado, com unhas gigantescas, com ar de diva alucinada, na Madeira a falar madeirense? Primeiro: como é que é possível? Eu vi ali Almodôvar, Las Vegas, e achei que esta mulher não tinha nada a ver com a Madeira. Aproximei-me dela e introduzi a conversa. Ela com ar de diva e sorriso irónico deu-nos um cartão-de-visita e disse: vejam e depois contactem-me. No cartão estava a morada de um site em que vemos uma lutadora fetiche vestida com todo o tipo de fantasias. Uma modelo, erótica e musculada, que luta com homens e que os esmigalha e sufoca entre as coxas. Destacámo-la porque era a figura mais surreal. Esta é uma história que nos tira da Madeira. Então assumimo-la como a diva do nosso trabalho”.

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Continuando no surrealismo aproximamo-nos do trabalho de Ricardo Barbeito, cujo projecto surgiu na sequência da sua obra Ursus arctos barbeiticos, a história de um urso da serra cantábrica que sofreu uma mutação genética de capacidades adaptativas ao meio urbano. O projecto explora a hibridez entre o homem e o animal. Surgiu na residência artística Red Bull House of Arts em que o urso aparece em Lisboa, e à sua volta foram criadas algumas peças ligadas à sua história e deambulações pela cidade. Esta personagem dialoga com a paisagem e dela retira elementos para construir a sua identidade.

“Na Red Bull foram inclusive criadas umas sextas-feiras com a casa aberta para que o público pudesse visitar o espaço e doar pelos à investigação. Nada como a ciência para explicar o inexplicável”, reflectiu Ricardo. Foi criada uma colecção de pelos e cabelos dos visitantes e daí nasceu a leitura e interpretação para este projecto. Ricardo criou uma aproximação através de imagens aéreas do Google do que poderiam ser os tecidos do urso.

Assistimos então a uma associação entre o fio de cabelo e a via rápida. “O cabelo tem uma morfologia e manchas que me faziam lembrar as faixas de rodagem. E o trabalho divide-se assim, há uma série de fotografias que ligam a cartografia às imagens de satélite da Madeira. Há uma aproximação do que pode ser o nosso tecido, a nossa pele e uma ligação com a pele da paisagem”, contou. Tendo em conta que o urso deambula pela paisagem, dialoga com ela e apropria-se para criar o seu código genético, o conjunto de fotografias alude a esse factor.

Para fazer a interligação Ricardo lembrou-se de colocar uma bola de pelos púbicos no corredor da exposição que vai desembocar na sua obra, com o objectivo de explorar a reacção das pessoas. Ricardo apenas não sabia de antemão que iria ficar refém da sua obra, pois não saiu do espaço com receio do que poderia acontecer à famigerada bola. Digamos que foi o momento dadá da exposição. “Acabaram por mexer na bola. Dez minutos antes de começar a exposição tinham-na retirado. Fiquei fulo em busca da bola de pelo e descobri que foram colocá-la no meio da obra de Yonamine pois pensavam fazer parte do seu trabalho”. Mas claro que não está afastada a hipótese de a senhora da limpeza “eliminar” a bola de pelo.

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Lucília Monteiro encontrou uma diferente perspectiva para o seu trabalho. Embora insegura e sem ideias aquando da sua chegada, acabou por encontrar um tema que não só aludia à sua infância, como também à velocidade: a canavieira. Trata-se de uma planta, uma espécie de bambu que cresce a um ritmo desenfreado e que é utilizada na agricultura como estaca para os feijões, leguminosas em geral e também para a criação de brinquedos, os carrinhos de cana.

Foi este o ponto de partida para Lucília que optou por construir os brinquedos para mostrar a velocidade da sua geração. Juntamente com os carrinhos expôs uma série fotográfica da cana como símbolo que representa a natureza, do poder desta perante o homem, pois cresce no meio do cimento e alcatrão e corrompe a via rápida. “Por isso fotografei-a perto das vias rápidas. Usei a cana como um símbolo, para pensar um pouco no equilíbrio e respeito que temos de ter pela natureza e em não construir sem pensar. Esse foi o objectivo do trabalho”, contou. Construí os carrinhos para mostrar a velocidade da minha infância. Na altura não havia auto-estadas e os carrinhos eram os nossos brinquedos. Agora é um pouco mais complicado porque há muito mais trânsito”.

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Voltando à fotografia, forma de expressão utilizada pelo madeirense Hugo Olim, que escolheu uma janela da Casa das Mudas para o seu site-specific. A paisagem é um tema recorrente no seu trabalho, não só a paisagem física, como também a digital, e a sua desconstrução. Hugo expôs uma série de imagens que fotografou de alguns furados e enquadrou-as numa janela rectangular estabelecendo uma relação de sobreposição da paisagem. O espectador observa a fotografia exposta ao mesmo tempo que observa o exterior. Como se houvesse uma paisagem estática e outra em movimento. Segundo Hugo “foi um percurso a várias velocidades onde não existe qualquer manipulação das imagens. O facto de as ter exposto em frente a outra paisagem funde-se, mas acaba por se tornar ruído, ou então há uma abstracção do que se está a ver no interior e passamos a ver o que está lá fora. Essa relação de proximidade ou afastamento com a imagem é algo que destaco”.

Por este projecto várias etapas se sucederam. Há um estudo, uma exposição e em seguida a edição de um livro até ao final do ano. Para o livro, a ideia surge dos múltiplos olhares sobre a paisagem, do deixar de ser apenas uma visão estética ou artística, mas também convidar outras artes que coloquem peritos no campo da arquitectura paisagística, geografia, literatura e sustentabilidade. Enquanto o livro não é editado a exposição pode ser vista na Casa das Mudas até ao dia 30 de Novembro.

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