DIÁRIOS DO UMBIGO

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Ilustrações de Andreia Bernardo.

Era a última camisa lavada mas a circunstância merecia. Inesperadamente, como sempre, a Telma telefona para convencer-me a acompanhá-la a um daqueles eventos culturais que só ela sabe que existem. Se não fosse por ela a camisa continuaria guardada e pronta para uma outra incursão solene como ir ao supermercado comprar mais água tónica.

Diz-me que há um festival qualquer dos índios onde passam umas curtas-metragens portuguesas. Tudo o que quiseres Telma, as feridas da última viagem pela música experimental já sararam. Compreendam que o meu espectro cultural anda algures entre o Miles Davis e os Led Zeppelin. Mas a Telma tem uma melodia que me é eficaz e eu já estive mais longe de lhe dedicar um poema, escrevinhado numa qualquer conta da água ou da luz, provavelmente usada para ensopar mais um copo caído no chão da sala. Se calhar é por isso que eu nunca consegui publicar nenhum livro.

Camisa abotoada, saio para a rua e vou a pé que o metro assusta-me. Aliás, eu sei lá navegar no metro, todas as estações são iguais e sofro de um medo terrível de sair na paragem errada e ter que pedir indicações. A cidade não muda nunca, mais buraco menos buraco vai dar tudo ao Marquês, mas eu conheço Lisboa é à noite, dois ou três gins depois.

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No Cinema São Jorge amontoava-se um conjunto de pessoas daquela classe entre o artista e o jovem com manias de pertencer a uma imensa minoria, e havia miúdas de óculos de massa e pinturas carregadas. Deve ser por isso que isto é festival de índios. Tenho tempo de agarrar num panfleto onde ser anunciam as sessões, completo com fotografias a cores que não me dizem absolutamente nada. Mas eu costumo estar errado muitas vezes.

Preparo-me para tomar a decisão de inspeccionar o bar quando a Telma aparece apressada, subindo aquelas escadas com o sol a incidir-lhe nos cabelos qual aparição da virgem. A primavera anuncia-se nos seus calções de tom neutro tão elegantes que acreditei que fizessem mesmo parte do seu corpo. Aquele arredondado provocou-me um calafrio e dei por mim a imaginar que havia ali um botão mágico que me conferisse poderes de Ali Babá, um toque certeiro e Abre-te Sésamo; todas as metáforas e poemas do mundo sairiam da coxa de pandora para sobrevoar-me e afagar o meu pobre coração (ou o que resta dele).

Especado, ainda com os óculos escuros postos, recebo dois beijos de cumprimento e o seu sorriso. "Acordaste agora?" pergunta-me, e eu só queria responder-lhe que ainda estava a sonhar.

Bilhetes comprados, há tempo para por a conversa em dia. A vida cá continua, as garrafas esvaziam-se e os copos por vezes são lavados. Digo-lhe que estou a escrever para uma nova revista mas que ainda é segredo. Ela fala-me das suas coisas, que no emprego tudo igual, em casa a mesma coisa e que tem saudades das nossas incursões pela vida nocturna Lisboeta. Eu concordo, afirmando que passear por Lisboa à noite sem ela é como ter o mesmo pesadelo todos os dias.

Entrámos para a sala de cinema e os filmes foram apresentados. Eram três curtas-metragens e estão a concurso. Maravilha. Será que posso votar? Não percebi. Uma lengalenga com les artistes a explicarem as suas motivações.  "Aquele é um amigo meu, este é o seu primeiro filme", diz-me Telma ao ouvido. Tenho que ter cuidado com o meu comentário, não quero estragar-lhe o sorriso.

O primeiro filme fez-me ter fé e pensar que afinal posso ser surpreendido: um preto e branco fenomenal onde os actores se fundiam num fundo de animação, uma estória negra e sublime. Dei por mim a imaginar que poderia ser um daqueles que escrevem sobre cinema e tudo. Mas o resto foi um pouco como acordar depois de duas garrafas e não sentir absolutamente nada. A segunda curta-metragem era uma nódoa a fingir que era diamante. Havia um casal e uma casa e uma cena de sexo tão ridícula quanto as cuecas que eu usava quando tinha cinco anos. Vinte e cinco minutos da minha vida irremediavelmente perdidos para sempre. Dei por mim a dar valor à vida e a ter medo do juízo final, a pensar que tinha tanta coisa para fazer, que esta não era a minha hora. A seguir passou uma espécie de documentário que até seria engraçado se tivesse princípio meio e fim. Uns disparates lá pelo meio a fingir de cena conceptual, a equipa técnica a aparecer e tudo, uma coisa do demónio. A Telma explicou-me depois que era uma forma de realismo mas para mim eles queriam era disfarçar alguma coisa.

Depois daquela tortura que até foi compensada pelo primeiro filme e pelo perfume da Telma, saímos rapidamente para a brisa do início de noite. O olhar dela pesava alguma tristeza, ela sabia que eu não tinha gostado muito mas não abriu a boca. Eu peguei-lhe no braço e disse "Onde é que se bebe um copo nesta cidade imunda?". Voltei a ver-lhe o sorriso e ela explica-me que há uma festa onde gostava de ir. Diz que é uma festa de disco sound.

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Dei por mim a pensar em lantejoulas e violinos, a última vez que dancei um disco sound foi provavelmente no baile lá da escola. Para mim tanto faz, desde que o bar tenha um gin decente tudo o resto é suportável.

A fila à porta do espaço era como em dia de futebol. Mas a Telma tratou de nos fazer entrar à frente de toda a gente. Senti-me como aquelas parvas da televisão, todas contentes nas zonas VIP.

O calor lá dentro quase me fez tirar a camisa, por isso a primeira bebida foi saciada em segundos. A música era supreendentemente agradável. Olhei para o palco e uma menina DJ tratava de por aquela gente a dançar mas apesar da pista estar cheia havia pouca vontade. Estes índios só querem é coisas modernas, pensei. Após mais dois ou três copos, os nossos corpos estavam mais juntos. O sorriso da Telma é contagiante mas um pouco triste. Lembra-me sempre aquele momento há uns quinze anos atrás onde estive quase a raptar esta mulher só para mim. Mas num instante a lágrima interior secou completamente. Estava a tocar o Spring Affair da Donna Summer.

No meio dos meus discos do Coltrane e dos Who há o Four Seasons of Love da Donna Summer. É verdade. Fiquei tão impressionado em ouvir que foquei-me no palco. Um jovem de camisa impecável dançava e tocava discos com uma alegria contagiante. Discos! De vinil. Ergui o meu copo meio vazio em saudação. A Telma disse que o conhecia, era o DJ John Holmes. Ri-me um bocadinho, se este era o John Holmes então era normal que passasse música dos anos 70, provavelmente sem mãos.

Acho que dancei, sempre com a Telma no centro da minha atenção, como nos velhos tempos. "Porque é que não estamos juntos mais vezes?" pergunta-me ela. Abraço-a, com cuidado para não verter o resto do copo, e não respondo. Senti-me puxado para um canto da sala, a camisa amarrotada e provavelmente com alguma nódoa alheia. Houve um breve momento onde os olhos de Telma brilharam, e depois um encosto de lábios que para mim soube ao céu e ao inferno juntos. A minha mão afagava os seus cabelos ternamente e ambos sabíamos que aquele beijo era uma mentira. Não só porque quinze anos depois já não importava, não só porque a bebida tomava o controlo das nossas almas fracas, não só porque a música nos incitava à troca de sorrisos.

Há quinze anos atrás eu fugi, e Telma seguiu com a sua vida, casando-se pouco depois. Trocámos mais um abraço quando a deixei em casa e quando regressei à minha sala onde uma garrafa me pedia companhia, escrevi como não escrevia há quinze anos atrás.

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