Foram seis horas de canoa para lá chegar. Lá dentro iam onze pessoas, uma mota, os colchões e a roupa de cama, a água de beber, a gasolina, o pão, 50 kg de arroz, os ovos que não chegaram inteiros à ilha mãe, a bicicleta do Professor Augusto e os baldes para tirar a água para fora da canoa.
A viagem começou bem, o dia estava bonito e o mar estava calmo mas por ironia divina chega o Maron. O Maron é um temperamento de mar difícil, é mar de cara fechada e sobrolho franzido, que impõe respeito e levanta a proa à canoa. E a chuva cai gorda… nunca vi chuva tão forte como na Guiné. A água entra na canoa, pelo mar e pela chuva, era tanta que não dava para manter os olhos abertos. Segura-se a mota, tira-se a água com baldes, uns têm medo, outros enjoam. O motor ensopa, afoga-se, e pára tudo. Lança-se a âncora, balança-se e balança-se, e troca-se para o segundo motor. Desvia-se a canoa das rochas, passa-se pela praia de Ametite e chega-se à Praia de Ambancana.
Agora é sair da canoa e levar tudo a pé, pelo lodo até à praia, porque ali não há porto. Mas vale a pena: a praia é linda. Juntam-se a nós crianças e mulheres Bijagós, despidos e de saias de palha.
Não há rede, não há luz, não há água. Pinga pelo telhado de zinco da casa. Um morcego instala-se no quarto, ouve-se música na rádio e bebe-se warga, debaixo de um telheiro à chuva. Warga é açúcar, muito açúcar, diluído em chá verde. Ferve-se num jogo de paciência, um passa que passa o chá entre dois copinhos, um ferve e volta ferver numa chaleira pequenina, para depois se beber em círculo e em companhia.
Aparece a Nadita, uma menina de cinco ou seis anos, que fala sem parar. Fala, fala, fala e repete tudo mais devagar quando vê que eu não estou a perceber. Se eu continuo sem perceber, ela continua a falar. Faz uma pausa, olha para mim e diz: “– M’fala…” e volta a repetir tudo outra vez. Chega a uma altura que ela pergunta ao Mustafa se sou surda, porque tardo tanto na resposta, ele diz-lhe: “não, fala outra vez”. Ela acede “Hi!”– este é um som bonito que os meninos fazem quando dizem que sim – E retoma o seu monólogo tagarela.
Estive mais de uma hora encaixada entre a Nadita e outra criança. Penduraram-se-me no cabelo e fizera-me todas as tranças que é possível fazer. Perguntam se o cabelo é mesmo meu, ou se são extensões. Não há coragem capaz de interromper tanta dedicação; e com as tranças fico, porque é assim que fica “bonito”. Chega o resto do gang, miúdos felizes, embrulhados naquele bocadinho de novidades. Tocam-nos, riem-se de nós, espantam-se. Somos muito brancos! Nas mãos, na palma das mãos, nas unhas e nas orelhas. Temos pêlos nos dedos das mãos e nos dedos dos pés, temos cabelos lisos nas pernas. A Nadita puxa-me a t-shirt pela gola, quer ver se por baixo da roupa é tudo branco. Temos sinais na pele "pintas de Deus" e usamos meias nos pés. Somos estranhos.