Esse Obscuro Objecto de Desejo.
A representação da figura feminina é uma constante na obra de Julião Sarmento. O seu trabalho está repleto de um voyeurismo cinematográfico e tem o desejo como leimotiv. A obra de Julião Sarmento dirige-se à imaginação dos espectadores, coloca questões sem dar respostas, criando assim uma interacção entre a sua obra e a imaginação de cada um. Vive em Portugal, mas é sem dúvida um artista internacional: "Gosto de viver cá, podendo ir para o aeroporto sempre que me apetece". Conversámos no seu atelier, um armazém grande e frio, à semelhança de um loft nova-iorquino, onde se vislumbram algumas telas com aspecto de work in progress.
Disse numa entrevista que "hoje em dia o corpo humano é o único objecto que ainda não foi reduzido a um lugar comum". O que o leva a ter esta opinião?
A arte é o corpo. A arte tem sempre uma função representativa, sempre. A única coisa que tem percorrido os tempos desde o homem primitivo até hoje em dia, sem falhar, é o nosso corpo. Desde o início da História de Arte, não existe um único momento em que a presença do corpo humano não tenha existido. Até nas próprias representações mais radicais da arte conceptual e pós-conceptual, o corpo está presente. Estou a lembrar-me agora da arte minimal do Donald Judd: as suas peças referem-se a dimensões humanas. Por exemplo, a distância que vai de um ponto ao outro de um cubo é a mesma do ombro à mão. Portanto, há sempre referências ao corpo. A sua presença é inevitável.
Como foi tornar-se artista num país que viveu uma sufocante ditadura salazarista e onde a palavra cultura tinha um significado longínquo?
Foi difícil, foi muito difícil. Hoje em dia, mais do que uma actividade, ser artista é quase uma profissão. Uma pessoa tanto pode escolher ser dentista como artista e isso era impensável quando eu comecei a trabalhar. As pessoas só eram artistas quando tinham uma necessidade absoluta e imperiosa de o serem. Não havia meios e não era minimamente viável do ponto de vista económico. Era preciso ter uma grande vontade.
Foi para a Faculdade de Belas Artes para se formar em pintura. No entanto, acabou por ir para o curso de arquitectura. Porquê?
Naquela época existiam os cursos de pintura, escultura e arquitectura. Eu comecei pelo curso de pintura, mas como não tinha fortuna pessoal nem tinha maneira de chegar a lado nenhum economicamente, decidi mudar. Até porque Portugal não tinha nada a ver com o que é hoje em dia. Então comecei a pensar em fazer qualquer coisa que me permitisse desenvolver a minha actividade artística e, ao mesmo tempo, que me permitisse pagar a renda da casa. Foi por essas razões que acabei por mudar para arquitectura, mas depois - como gosto muito de arquitectura, tenho um respeito absoluto por esta arte e nunca seria um bom arquitecto na vida - não acabei o curso.
Em que altura é que a sua carreira artística teve um início “oficial”?
Em 1968, quando fiz uma exposição na Sociedade Nacional de Belas Artes.
Como foram os primeiros anos de estudo e pintura?
Foram super interessantes. Naquela altura a informação não passava por toda a gente como passa hoje em dia e o simples contacto com algumas pessoas que estudavam comigo na escola permitiu-me ter acesso a algumas coisas que até então não tinha. Ao nível de captação de nova informação foi extremamente interessante e gratificante.
Como é que deu o passo artístico além-fronteiras?
Bem, tem um bocado a ver com aquilo que eu pretendia enquanto artista. Eu era extremamente crítico da cultura portuguesa naquela altura, aliás como éramos todos.
Hoje em dia já não é?
Hoje em dia já nem sequer penso na cultura portuguesa. Mas nesse tempo vivia aqui e era fundamentalmente crítico em relação à forma como as pessoas encaravam o projecto cultural português. O que é que os “intelectuais” em Portugal faziam naquela altura? Iam para Paris, depois começaram a ir para Amsterdão ou Londres, viviam lá cinco anos e quando voltavam a Portugal eram os grandes heróis. Em Londres nem Deus os conhecia, mas quando chegavam cá eram valorizados apenas por terem vivido em Londres. Não era isso que me interessava. Queria continuar a viver aqui e exportar o meu trabalho, ser um artista internacional no verdadeiro sentido do termo. Então eu pensava assim: “Quem são as pessoas em Portugal com as quais eu tenho afinidades? Duas, ok. Já sou super amigo destes dois com quem eu tenho afinidades, agora quero mais”. Interessava-me o diálogo com outros artistas a nível internacional. Então comecei a escrever para galerias estrangeiras e a pedir contactos dos artistas que me interessavam. Escrevia-lhes e eles respondiam. Depois foi como uma bola de neve, as coisas começaram a desenvolver-se e comecei a ser convidado para exposições. O que me interessava mesmo era trocar experiências e discutir ideias. Se fosse hoje em dia, talvez não fizesse assim, mas na altura, com toda a minha ingenuidade, funcionou.
Em algumas das suas pinturas relaciona animais com pessoas. Porquê?
Todas as pessoas carregam um certo sentido de animalidade e isso interessa-me muito. Nos anos 70 realizei uma série de trabalhos que tinham uma espécie de título genérico: Segredos do Mundo Animal, em que misturava pessoas com bichos.
A partir de 1975 começa a utilizar frequentemente a linguagem verbal. O que o leva a incluí-la nas suas obras?
Fundamentalmente porque sempre me interessei muito por literatura e a junção do texto e da palavra com a visão era uma coisa para mim muito natural. Até porque há duas leituras possíveis, e portanto ambíguas, do texto. Por exemplo, quando leio a palavra “casa”, sei o que significa, mas a mesma palavra também tem uma leitura visual consoante a maneira como é escrita. É um ícone visual dentro da existência da própria obra. Eu utilizava as duas coisas, como truque visual e como aquilo que ela é em termos declarativos.
Também utilizava textos de autores que considerava fundamentais, como Georges Bataille e Marquês de Sade. Porquê a escolha destes autores?
Estava muito interessado nos chamados escritores malditos e o discurso do Bataille interessava-me muito. Aquilo que ele representava enquanto pensador, pertencendo a uma escola determinada...
Trabalhando dentro dos parâmetros da sedução, grande parte dos seus filmes super 8mm são viagens à volta do corpo humano, havendo uma interacção entre o corpo e a câmara. Fale-me dessas ideias.
No fundo, a câmara era quase uma extensão do meu próprio corpo. Funcionava como o meu olhar sobre o corpo, como uma interacção do meu próprio olhar que era filtrado pela câmara. Eu era quase como os japoneses (passo a comparação) que vão visitar os grandes monumentos históricos e nunca os vêem, a não ser quando chegam ao Japão. Eles têm sempre uma visão abstracta das coisas, porque já saem do autocarro de máquina em punho.
Os seus primeiros filmes eram uma provocação visual, impregnados de sensualidade e erotismo, com uma grande intensidade de movimento. Era fácil encontrar personagens para fazê-los?
Não, não era nada fácil, mas encontrava. Claro que hoje em dia não custaria nada, mas naquela altura...
Então como conseguia?
Ah, porque eu era muito convincente (risos). Eram sempre pessoas com as quais eu tinha uma grande cumplicidade e partilhavam as coisas comigo de uma forma quase carnal. Todas as pessoas que trabalhavam comigo eram minhas amigas íntimas e havia um relacionamento muito próximo entre nós, era isso que permitia que as coisas acontecessem.
O filme Pernas (1975), expõe a imagem de uma púbis que se move lentamente sem desenvolvimento da acção. É apenas o tempo e o desejo que se expõem nesta imagem?
É, mas é fundamentalmente um filme sobre o tempo. Claro que o desejo está sempre implícito, mas uma coisa acompanha a outra.
No seu filme Faces (1976), duas mulheres beijam-se desenfreadamente e o batom que os lábios espalham nas bocas desfigura-as até revelar a imensidão do desejo. Que repercussões é que este filme teve na época?
Nenhumas (risos). Na época o filme foi visto por quatro ou cinco pessoas. Hoje em dia existem mais de mil artistas plásticos em Portugal profissionais entre os 20 e os 30 anos; naquela altura existiam três. Nem sequer existiam galerias onde eu pudesse mostrar o filme, então mostrava-o em casa para um grupo de amigos muito restrito.
O trabalho de Andy Warhol, de cariz mais experimental, constitui uma referência no seu trabalho?
Claro que sim! Absolutamente! Provavelmente, eu não teria feito as coisas que fiz se não tivesse conhecido o Andy Warhol. Ele foi uma espécie de guru da minha geração. Não só o Andy Warhol mas tudo aquilo que ele representava em termos de pop culture. Eu sou um filho da pop culture, pertenço a essa geração que hoje em dia é “dinossáurica”, mas que, naquela altura, representou uma espécie de volte-face em relação ao que se fazia anteriormente.
Luis Buñuel é um dos seus realizadores favoritos. Em que se identifica?
Não me identifico nunca com nada, acho que é uma pretensão terrível, mas interessa-me muito o trabalho de Buñuel. Primeiro, pela perspectiva que ele tem sobre a sedução e o desejo, e segundo, pela forma como ele subverte a experiência surrealista e a transforma ao nível do cinema de uma maneira que a mim me interessa particularmente. É obsessiva, mas ao mesmo tempo é ambígua e paradigmática de uma determinada maneira de ver o cinema. É um cinema para além do cinema e o que subsiste não são as imagens, mas o que resta depois de as imagens passarem.
Dedicou um quadro ao filme Blue Velvet, de David Lynch. Porquê?
Porque quando eu vi o Blue Velvet fiquei muito perturbado (ainda hoje em dia), e quando há coisas que me colocam com pele de galinha (risos), apetece-me fazer trabalhos sobre ou dedicados a isso. E de facto, o Blue Velvet é para mim um dos marcos da história do cinema. Olhando para a experiência dos filmes tardios mexicanos do Buñuel, há qualquer coisa no Blue Velvet que tem muito a ver com essa experiência Buñueliana.
A sua paixão pelo cinema nunca lhe deu vontade de tirar um curso?
Não, valha-me Deus! No dia em que eu tirasse o curso passava-me logo a paixão. Eu gosto muito de ser autodidacta e de saber as coisas de uma forma quase atávica. O meu interesse por cinema é um interesse de espectador. Nunca seria capaz de realizar um filme. Reparei nisso quando trabalhei em conjunto com Atom Egoyan no filme Close. Eu trabalho sozinho, o Atom trabalha com 500 pessoas. São duas maneiras completamente diferentes de funcionar.
As suas primeiras fotografias basearam-se na encenação e numa técnica narrativa. Qual o procedimento que o conduzia à formação destas imagens?
Era um bocado como as fotonovelas. Nunca me apeteceu contar histórias, mas sim fragmentos, coisas que se passavam antes ou depois da história. Nessa altura estava muito interessado numa espécie de linguagem fotonovelística e não a queria realizar em cinema mas sim em imagens fixas, stills. Todas as fotografias eram completamente encenadas conforme o movimento que eu achava que as personagens deviam fazer.
Agora um trabalho de que eu gosto particularmente: Quatre Mouvements de la Peur (1978) apresenta nove fotografias a preto e branco que desenvolvem uma sequência em que uma mulher foge seminua por uma floresta à noite, é surpreendida por um flash e acaba colocada fora do enquadramento, visualizando-se apenas fragmentos de braços e pernas. Neste trabalho, estabelece uma relação com o objecto de desejo numa atitude voyeurista?
Sempre. Sou sempre um voyeur do meu trabalho. Eu faço os trabalhos fundamentalmente para mim, depois se virão outras pessoas que se interessem por eles, para mim é óptimo. Servem fundamentalmente para o meu umbigo (risos).
Fale-me do conjunto de obras chamadas Tales on Dirty Realism, dedicadas ao escritor Raymond Carver.
Nesse conjunto de obras fiz uma espécie de base constituída por imagens algo obscenas que retirava de jornais e revistas e pintava por cima. Só me interessavam imagens que encontrava em sítios inesperados. Aliciava-me muito mais encontrar coisas fora do contexto do que dentro dele. Se eu fosse à Playboy ou à Penthouse, facilmente encontraria mulheres nuas. Mas aí tudo estaria contextualizado e não era isso que pretendia. Imagine que aparecia uma mulher nua no Diário de Notícias. Retirava essa imagem do seu contexto, que já de si era estranho, e colocava-a num contexto completamente diferente. Tinha muito mais a ver com o que eu procurava em termos de imagética.
Entre 1981 e 1984 pintou sobre papel, principalmente papel pardo. Porquê?
Porque era mais barato. Passei quatro anos na tropa e entretanto deu-se o 25 de Abril. Quando vim cá para fora não tinha o curso acabado e precisava de trabalhar. Como não tinha dinheiro para pagar materiais e sempre preferi fazer as coisas de forma low budget (mesmo hoje em dia que posso gastar mais dinheiro em certas coisas prefiro o low budget), decidi trabalhar em papel pardo. Comprava uma resma de folhas de papel pardo, que me custava 400 escudos, pelo preço uma folha de papel fabriano. Ou seja: podia fazer 200 desenhos pelo preço de um. Por outro lado também me deu um certo traquejo habituar-me a trabalhar com materiais pobres.
A série Dias de Escuro e de Luz, início das chamadas Pinturas Brancas, apresenta representações de corpos e de espaços - sobretudo corpos femininos - com a presença de uma mulher que é associada a elementos cortantes como facas. Porquê esta associação?
Até aí o trabalho que eu fazia era visualmente agressivo porque tinha cores fortes e tinha quase uma cadência expressionista e violenta. Quando comecei a trabalhar com os quadros brancos, deu-se uma transição. São séries com uma violência muito mais latente e contida. Para além disso, a existência de objectos de corte e agressão sempre me interessou. A ameaça latente que nunca chega a ser nada mas que pode vir a ser, eventualmente. Coloca as situações em desequilíbrio.
Em Pinturas Brancas, onde utiliza quase exclusivamente o preto e o branco, explora sobreposições e transparências das quais resulta uma grande riqueza de efeitos texturais. O que o levou a fazer este tipo de exploração? As texturas podem ter a ver com a pele?
Têm, claro que têm. Não só com a pele, mas também com paredes. Esse tipo de textura permite-me sempre utilizar diversos tipos de traço, mais grosso, mais fino, interrompido por obstáculos...
Uma paixão inesperada fê-lo deixar o seu estúdio e perder todo o trabalho realizado até 1975. Nunca o recuperou?
Não. Tudo pode ter acontecido, tinha lá tudo: livros, discos, pinturas, trabalhos, etc. Passei 12 anos sem lá ir porque consoante o tempo passava ia devendo mais dinheiro da renda. Quando lá voltei atendeu-me uma velhota que nem sabia quem eu era. O meu espólio perdeu-se na noite dos tempos e neste momento até é curioso porque há uma quantidade de coisas da minha vida que eu não sei onde está. Isso tudo desapareceu e eu na realidade não sei o que aconteceu, se está destruído, se deitaram fora, se existe, se está na casa de alguém. Tudo é possível...
Pretende sempre que as suas obras coloquem questões. Agrada-lhe uma interacção entre o público e os seus trabalhos?
Sim, sem dúvida. Em 2001 fiz uma instalação-vídeo chamada Charm, na biblioteca da Faculdade de Letras do Porto. A biblioteca era labiríntica e no fundo do corredor coloquei um monitor onde estava uma figura que reagia e falava com as pessoas conforme se aproximavam. Isto era feito através de uma quantidade de sensores colocados nos corredores. A personagem chamava-as, dizendo: “venha cá. Então, chegue mais perto”. Quando a pessoa chegava mais perto ela começava a falar e contava-lhes uma história completamente obscena, e se a pessoa se fosse embora ela dizia: “então onde é que pensa que vai? Volte”. Foi uma experiência muito interessante e na altura até saíram algumas notícias divertidíssimas em jornais que diziam: “Julião Sarmento expõe pornografia na Faculdade de letras”. O que é que isso causou? Que as pessoas fossem lá, mas depois ficavam espantadas porque estavam à espera de chegar ali e ver um vídeo porno, acabando por não verem pornografia nenhuma. Isto tudo para lhe responder que este tipo de interactividade me interessa muito.
Disse numa entrevista que o que faz hoje é parte do que fez ontem e do que fez há 20 anos e do que fará amanhã. Comente esta afirmação.
A vida das pessoas é formada por uma espécie de andaimes, uns por cima dos outros. Embora não seja de uma forma racional, tudo aquilo que a vida foi ontem se vai reflectir naquilo que a pessoa é hoje, é inevitável. Portanto, o meu trabalho é fruto disso. Cada coisa que eu faço hoje é uma espécie de banco de dados que eu vou utilizar no trabalho que vou fazer amanhã. Não faço trabalhos que caem do céu aos trambolhões, tudo está baseado noutra coisa qualquer. Aquilo que eu fizer hoje baseia-se nessa pirâmide total.