FOTOGRAFIA

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A legenda de uma das suas fotografias de liceu dizia: Diane Nemerov abanará a árvore da vida e fará cair frutos nunca antes vistos. E assim foi. Anos mais tarde, Diane Nemerov tornou-se Diane Arbus, nome que conhecemos e associamos ao impressionante trabalho fotográfico que sobreviveu até hoje. Embora só tenha obtido o Arbus em 1941 depois do casamento com Allan Arbus, a essência desta Diane existia desde a infância – estava presente na menina que, apesar de todos os seus medos, se sentia mais confortável no escuro à espera de monstros; na adolescente que não desviava o olhar dos mendigos e exibicionistas que encontrava no metro. Era esta Diane que via a vida no seu estado mais cru, porque tal como a Alice do seu Livro das Maravilhas favorito, a realidade sempre lhe pareceu cheia de pequenos surrealismos que valia a pena explorar.

A Cave > Tal como se da construção de uma casa se tratasse, o seu processo de descoberta artística foi lento e faseado. Os alicerces do trabalho de Arbus podem encontrar-se no alto da torre de marfim que os Nemerov ergueram em Nova Iorque. O império da família começava em plena Quinta Avenida, no Russeks, um dos maiores armazéns de peles dos anos 40, e acabava no apartamento do Central Park West onde a jovem Diane vivia uma existência privilegiada mas asséptica. Nunca se sentiu completamente integrada no ambiente de perfeição austera que a rodeava e esse sentimento de inadequação seria o início do seu fascínio pelo desvio à norma. Durante a adolescência, ia muitas vezes para o parapeito do apartamento dos pais olhar para a cidade cá em baixo. Confrontando a sua relação com o abismo, olhos nos olhos.

Esta frontalidade viria a estar presente nos seus retratos de “freaks”, aberrações de circo, doentes mentais, travestis e transsexuais. Arbus usou-a para descobrir as idiossincrasias que os tornavam humanos. E também para captar os segredos bizarros de pessoas aparentemente banais e mundanas, num processo que só a fotografia pode mostrar. Nuances nem sempre visíveis a olho nu mas que a objectiva capta, deixando difuso o que nos distrai. Foi sempre uma observadora intensa da vida: interessavam--lhe as ambiguidades, as incoerências, a falha e o erro. Procurava a verdade que escapa por entre os dedos que agarram os contornos nítidos da superfície e encontrou a sua profundidade nas margens da sociedade.

O primeiro andar > Antes de enveredar por um caminho menos convencional, deu os primeiros passos atrás da câmara no mundo da moda, em parceria com o marido Allan Arbus. Juntos fizeram editoriais para revistas como a Harper’s Bazaar, a Seventeen e a Glamour. Nenhum dos Arbus gostava particularmente deste mundo polido. No caso de Diane, talvez lhe parecesse muito semelhante ao apartamento dos Nemerov: asséptico.

A pouco e pouco abandonou o mundo do glamour, começando a investir numa realidade despida de qualquer enfeite. As aulas com Lisette Model inspiraram-na a procurar uma voz própria e entregou-se a esta “cruzada” de corpo e alma depois do seu divórcio em 1959. Sempre com a máquina fotográfica atrás de si, percorreu os bares, as ruas, as vielas e os parques da cidade, tornando-se presença habitual no Hubert’s Museum na Times Square. O Hubert’s era um espaço de curiosidades que se tornou um ícone da cultura alternativa nova-iorquina entre 1920 e 1965. Foi aqui que Diane conheceu algumas das figuras que viria a fotografar, como Eddie Carmel, o gigante do Bronx, e Andy Potato Chips, um anão russo. De certa forma, o Hubert’s Museum foi o epicentro do seu trabalho.

O segundo andar > Entramos agora no patamar dedicado à década de 60 e descobrimos o seu período mais fértil em termos criativos. Foi nesta época que desenvolveu os seus trabalhos mais marcantes, como a série de fotografias em campos de nudistas e o primeiro editorial para a Esquire. O editor da revista na época e futuro realizador de Kramer vs Kramer, Robert Benton, pediu a Diane que ilustrasse um artigo sobre a vida nocturna de Nova Iorque. Ela apresentou uma série de seis fotos dos mais variados “freaks” do underground nova-iorquino.

Num “quarto” adjacente conheceu Marvin Israel, pintor, professor na Parsons School of Design, editor da Harper’s Bazaar e futuro mentor de Diane. Marvin acreditava profundamente no talento de Arbus e incentivava-a a aprofundar as obsessões que eram o motor do seu trabalho: «Podes fotografar toda a gente no mundo», dizia-lhe. Seguindo o conselho de Marvin, Diane explorou as suas obsessões como se fosse uma arqueóloga, usando a máquina fotográfica como instrumento de intimidade que lhe permitia dialogar com o mundo. Talvez por isso, foi nesta altura que abandonou o 35mm, começando a usar uma Rolleiflex de médio formato – uma câmara com um ecrã ao nível da cintura para que pudesse interagir com os retratados sem a intromissão de uma objectiva, observando o ecrã enquanto falava.

Ela agia com a convicção de que o fotógrafo não é um mero espectador mas sim um sujeito activo no momento que regista, tentando atingir um nível de proximidade que lhe permitisse derrubar a máscara de quem tinha à sua frente. Procurava um momento de revelação e não se importava de esperar o tempo que fosse necessário até o conseguir captar. Fotografou Eddie Carmel durante 10 anos até conseguir a famosa fotografia do gigante do Bronx vergado sob o tecto da sala, perante o olhar dos pais.

O Sótão > O último projecto de Arbus foi desenvolvido entre 1969 e 1971. Foi durante este período que fotografou doentes com deficiências mentais, enfrentando o desafio mais difícil da sua carreira. A linguagem destes pacientes era diferente daquela a que Diane se acostumara na intimidade que tinha conseguido atingir com os seus retratados. Tratava-se de um mundo autista, inexplorado pela sua câmara até aquela altura. A falta de proximidade com quem fotografava fez com que Diane sentisse que o trabalho fugia ao seu controlo: a máquina fotográfica tinha sido sempre a sua ligação com o mundo. Com esta nova série de fotografias sentia-se perdida e não sabia o que procurar, o que acentuava ainda mais a depressão que a atormentava. Embora sempre tivesse sofrido de momentos depressivos, nenhum deles foi tão forte como este, que acabou por ser fatal, quando em 1971 Arbus se suicidou. Foi encontrada a 26 de Julho desse ano com os pulsos cortados depois de ter ingerido uma dose elevada de barbitúricos. A sua morte está envolvida em vários mitos – incluindo supostas fotografias que terá tirado a si própria durante o suicídio – mas qualquer teoria será sempre especulativa.

Nesta análise imaginária e de conclusões muito pessoais, escolho acreditar que o vazio que encontrou enquanto fotografava o seu último projecto foi demasiado intenso para suportar. O reflexo era demasiado claro e gritante. Fez cair da árvore da vida frutos nunca antes degustados e, tendo-o feito, recolheu ao sótão da “casa” que construiu. Citando As Virgens Suicidas: «foi estar sozinha para sempre num sítio onde nós nunca encontraremos as peças que a constróem». E ainda bem, porque tal como Arbus dizia «uma fotografia é um segredo sobre um segredo. Quanto mais te diz, menos sabes».

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