FOTOGRAFIA

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Universos Oníricos

«Eu só sei uma coisa: o meio de me exprimir de uma maneira ou de outra. A fotografia dá-me o meio, um meio bastante mais simples e rápido que a pintura». Man Ray

José D'Almeida e Maria Flores caíram numa poção mágica e o resultado é surreal. Um mundo onírico e visualmente expressivo, onde não se coibem de dar asas à imaginação. Vários elementos desde o mais óbvio ao mais inusitado se podem desvendar nas suas imagens. Moscas humanas, personagens com cabeças de candeeiro e de aquário, ou até mesmo vestidas com caixas de papelão. Juntam elementos e objectos que são dispostos de uma forma simbólica. É como se fizessem parte de uma caixa de segredos, relicários que encerram fórmulas e segredos. Não pensem em fazer um quebra-cabeças de cada vez que observam as imagens pois o número de elementos que as compõem é tão vasto que seria impossível dar significados a todos eles. Atribuir-lhes o título de fotógrafos não faz jus aos dois performers porque esta dupla vai mais além. Eles compõem todo um cenário em jeito de instalação que é posteriormente registado, onde todo o interesse e beleza está na arte de construir a imagem final.

Ambos começaram pela pintura e foi através desta arte que se conheceram. Se por um lado Maria Flores tem formação académica nesta área, José D'Almeida tem uma abordagem à pintura numa vertente autodidacta. Através do pincel José vai criando um universo fantástico e Boschiano, assumindo o seu fascínio pelo período barroco, onde o  bom e o mau estão sempre presentes. A fotografia acaba então por ser um prolongamento da pintura.Quando se conheceram começaram a entrar no mundo da fotografia criativa e ajudaram-se mutuamente até que decidiram trabalhar a quatro mãos. Muitas das fotografias que fazem são trabalhos preparatórios para a  própria pintura e decorrem em paralelo, quase de mãos dadas. «Foi aliás uma constante a muitos artistas. Dalí mandava fotografar todas as suas obras», constata José.

Existe uma narrativa cénica em todos os ambiente fotográficos que recriam, e as imagens que fazem não são desprovidas de adereços. «Há imagens que demoram cinco minutos e outras que levam dias e que exigem um trabalho preparatório mais exaustivo porque há toda uma composição cénica. Muitas vezes temos que conceber os objectos e eles vivem para a fotografia naquele espaço e tempo real», conta Maria Flores. Um dos auges deu-se numa exposição que fizeram em Vendas Novas, a Internacional de Artes Plásticas em que lhes cederam um palco de teatro para expor. Foi a loucura das loucuras não haveria espaço melhor para estes dois criativos poderem extrapolar a sua imaginação. Digamos que foi ouro sobre azul. Expuseram uma série de fotografias de grandes dimensões e fizeram um casamento perfeito entre imagens, objectos e adornos para teatro.

A logística de criação de cada imagem não é nada fácil e os artistas percorrem uma série de passos para atingir o êxtase final. Quem vê o resultado não imagina tudo o que está à volta. Por vezes é o caos. «Uma vez fomos convidados por João Prates (director do Centro Português de Serigrafia) para criar uma fotografia sobre Bach para a Festa da Música no CCB. Decidimos então fazer o making of de uma imagem e só assim dá para ter a noção do universo caótico em que nos movemos» conta José D'Almeida. Geralmente fotografam em casa mas também lhes agrada a ideia de fazer as suas composições no exterior. «Quando o fazemos procuramos casas abandonadas e sítios decrépitos que tenham uma carga associada. Aos sítios limpinhos falta-lhes a marca do tempo, que também é uma das constantes do nosso trabalho» conta José.

Geralmente fazem auto-retratos e raramente fotografam outras personagens. «Bom, não somos previlegiados pela natureza mas de qualquer forma é aquilo que somos (risos). Não temos outros modelos, estamos mais à mão e depois porque é um trabalho de autor, já estamos tão ligados àquele cenário que entramos no contexto e no conceito mais facilmente. Não temos que formatar ninguém. Mas não invalida que não te possamos fotografar, e não precisas de tirar a roupinha (risos)», revela José.

Trata-se de mundos oníricos, satíricos, quase mágicos e até mesmo a roçar o barroco. Usam e abusam da metáfora e da analogia. Deliciam-se com a ideia de que os peixes grandes comem os peixes pequenos e com o mundo sócio-crítico. Uma das imagens que o demonstra na perfeição é Modern Romance que revela em si a componente crítica de um matrimónio em decadência e que tenta aguentar as aparências. Ele encontra-se nú, enverga um abat-jour que substitui a cabeça e tem nas mãos uma bandeja repleta de rolhas ao invés de bomboms. Ela encontra-se sentada numa poltrona a falar ao telefone. Segura num espelho e observa-se com indiferença.

A inspiração por vezes surge-lhes até de forma transcendental. «Há fotografias que idealizamos em estado de vigília, em que estamos acordados, mas meio a dormir e de repente dá-se o clique. Apanhamos qualquer coisa no éter que nos diz que é por ali que temos que seguir», conta José. Algumas das fotografias constituem uma espécie de homenagem às suas principais influências, como é o caso de Brueguel, Magritte e Munch. Existem também muitas influências musicais como Björk e Radiohead. «Mesmo a nível de fotógrafos. Gostamos muito de Saudek, Francesca Woodman e Duane Michaels. São múltiplas as influências que absorvemos, filtramos e damos o nosso próprio estilo», conta Maria Flores.

Photoshop muito, ou muita Realidade

As duas coisas e muito de tudo. Quem observa as fotografias desta dupla não deixa de pensar sobre a inúmera quantidade de photoshop que nelas foi depositada mas a realidade é bem diferente. O Photoshop está bem doseado e em quantidades q.b. «Existem fotografias como A Alquimia da Música onde existem várias latas com música enlatada pronta a ser consumida. Eu dei-me ao trabalho de retirar todos os rótulos e de colocar rótulos produzidos por nós, o que  poderia ser perfeitamente feito em Photoshop», conta José. Maria acrescenta que «o photoshop que fazemos é normal, é um tratamento quase de pintura e não o de colocar objectos e retirar. Mas também é necessária muita criatividade para essa fase. Dá tanto trabalho estar no laboratório como estar no photoshop. A câmara escura deixa de ser analógica e passa a digital. Gostamos de retocar as nossas imagens para lhes atribuir um carácter único».

Os artistas têm uma forte ligação com o Centro Português de Serigrafia. «O CPS tinha já alguns artistas residentes na área de fotografia, mas muito poucos, uma vez que estão mais vocacionados para as áreas de serigrafia e gravura. João Prates viu o nosso trabalho e gostou bastante. A partir daí começámos a fazer edições limitadas, abrindo a porta ao mundo da fotografia criativa», conta. Têm neste momento uma exposição de fotografia numa loja do CPS nas Twin Towers e fizeram uma importante exposição na Galeria de São Bento, intitulada O Lugar das Quimeras. Foi através desta exposição que me deslumbrei com o trabalho desta dupla. Fotografias de grande formato impregnadas de cor, vida e símbolos que não nos são indiferentes. Um universo onírico que não estou habituada a ver com tanta frequência quanto isso. «Gostámos imenso de expor na Galeria de São Bento e as imagens foram concebidas exclusivamente para a exposição. Há ainda um dado curioso, quando estávamos a escolher o papel para a exposição, a Epson adorou o nosso trabalho e acabou por patrocinar a exposição», conta José D'Almeida.

Projectos não lhes faltam e agoram estão a dedicar-se à Loja do Lopes, um novo espaço que abriu no interior do Pavilhão 28 do Hospital Júlio de Matos. Na Loja do Lopes há de tudo um pouco: fotografias e objectos num formato mais pequeno que irão fazer as delícias de quem por lá passar. Sim, porque José D'Almeida e Maria Flores não se limitam a fotografar, adoram fazer objectos, pensar com as mãos e dos objectos nascem fotografias.

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