Nasty Girls in Nara Land.
Foi através de um postal que vi pela primeira vez o trabalho do japonês Yoshitomo Nara. Uma boneca de enormes e maléficos olhos e dentes afiados, envergando um vestidinho verde a dizer ?fuck you? e empunhando uma faca a jorrar sangue. Não consegui desprender-me desta imagem. Mas afinal quem é este artista? Como será o restante trabalho dele? Senti uma enorme curiosidade por este homem que desenha bonecos com um ar subversivo e transgressor, com olhares demoníacos e sarcásticos.
Isoladas e solitárias, por vezes tímidas e de alguma forma encantadoras, estas amorosas figuras de grandes olhos que inundam os quadros de Nara podem tornar-se más e ameaçadoras? As crianças de Nara parecem de facto infantis e indefesas, mas longe da inocência. Elas olham-nos de esguelha com um ar de desprezo, fazendo caretas propositadamente. São personagens diabólicas, como que oriundas de estranhos contos de fadas, e não têm medo de abraçar as experiências da ansiedade, medo, e escape próprias da existência humana.
Nos desenhos, as crianças realizam inócuas actividades, como brincar com uma caixa, esquiar ou agitar uma bandeira. Outras vezes agitam outro tipo de objectos mais afiados, como facas e serras. Raparigas com expressões ambíguas que nos fazem pensar o quê ou quem pensam retalhar com aquela serra. Nara não vê estas armas como instrumentos de agressão: «olho para elas e são tão pequenas, como brinquedos. Como é que alguém pode pensar que elas utilizariam estes objectos? Não me parece. Eu, de certo, modo vejo estas crianças entre outras, maiores, pessoas más à volta delas, que empunham facas maiores?».
Nas pinturas, as crianças olham para o espectador com o que parece ser um olhar de cautela. Ou será cumplicidade? Incorporam elas um determinado cinismo, incongruente com a despreocupação infantil? Cada pintura tem diferentes efeitos nas mais diversas pessoas. «Por trás de uma aparente inocência há um claro potencial para a violência. Elas parecem tímidas, bem educadas, e graciosas, e a sua relação connosco, os observadores, define-se através dos seus grandes olhos. Tal como sonâmbulos, elas penetram no nosso inconsciente, onde o horror da vida quotidiana surge menos virtual do que real», referiu Gregor Jansen no livro Art Now - Arte e Artistas no Limiar do Novo Milénio (ed.Taschen).
Yoshitomo Nara nasceu em Hirosaki, no Japão, em 1959. Um tempo definido pelo desenvolvimento económico e pelo fluxo da cultura pop ocidental. De igual importância para a arte de Yoshitomo foi o isolamento do meio rural japonês e a imaginação que aí se estimulou. A sua biografia deve-se muito à sua infância de rapaz ?abandonado? na região rural de Aomori, onde a música e o desenho eram a sua única salvação. Enquanto muitos dos seus contemporâneos foram inundados pelos componentes pop de uma renovada cultura japonesa, Nara costuma dizer que « na minha infância tive uma grande influência do punk rock, cartoons americanos, comics japoneses e alguns programas de televisão». Motivado por todos estes factores, Nara expressa no seu trabalho a alienação e a cruel independência natural para muitas crianças. Nas suas pinturas, «por trás da sua aparência inocente elas revelam um conflito metafórico. O trabalho de Nara parece-se com um olhar peculiar para uma felicidade infantil dúbia. A rebelde veia dos seus protagonistas, contra origens vazias, interessa à sua procura pela identidade, incluindo traumáticas experiências de horas de solidão. A realidade e ilusão da infância e inocência, conflitos internos e a procura de uma terra natal e de si próprio são temas que são combinados nos seus cativantes trabalhos. Serão talvez estes sentimentos autobiograficamente motivados, mas que foram alimentados pelo mundo dos adultos, traduzidos para contos de fadas que evitam uma simples interpretação e confrontam-nos com a sua melancolia», escreveu Gregor Jansen no livro The Japanese Experience Inevitable (ed.Hatje Kantz).
Em 1985, Nara obtém uma licenciatura naAichi Prefectural University of Fine Arts and Music e três anos mais tarde muda-se para Dusseldorf, na Alemanha. Entre 1988 e 1993, Nara estudou na Kunstakademie Dusseldorf, e em 1995 recebe o prémio para os artistas da Nagoya City, Japão. Em 1998 começa a ensinar na Universidade da Califórnia, Los Angeles, e no ano 2000 muda-se para o Japão onde actualmente vive e trabalha. No Japão ele é tão popular como uma estrela pop e o seu número de telefone e morada são mantidos em segredo. Desde a sua primeira exposição a solo nos Estados Unidos na galeria Blum & Poe, que não parou de fazer exposições a solo, tendo feito mais de 40 desde 1984, em locais como o Institut fur Moderne Kunst Nurnberg, the Museum of Contemporary Art Chicago, e no Yokohama Museum of Art, onde teve cerca de 300.000 visitantes em poucas semanas. Nara é representado em Nova Iorque pela Marianne Boesky Gallery e em Los Angeles pela Blum & Poe.
«As suas distorcidas figuras encerram em si provocação, rebelião e solidão como princípios básicos, revelando uma atitude para com a vida desenvolvida nos mitos do rock e do punk», diz Gregor Jansen no livro The Japanese Experience Inevitable. Na sua obra Little Ramona, uma rapariga de ombros compridos e cabelo castanho permanece no centro de um sólido disco. O seu vestido curto com umas mangas enormes é inequivocamente infantil, mas o olhar penetrante e maléfico que emana dos seus brilhantes olhos verdes e o seu ar irritado, não é propriamente infantil. O seu nome é uma homenagem à lendária banda punk nova-iorquina Ramones. Ramona é uma personagem recorrente no trabalho de Nara e herdeira da atitude não reprimida das bandas rock.
Já foi reproduzida em T-shirts e postais e até mesmo em três dimensões, tornou-se inclusive numa mascote para os fãs de rock alternativo. No mundo da música, Nara já colecciona alguns fãs, entre eles Deborah Harry, Billie Joe Armstrong (Green Day), Carrie Brownstein (Sleater-Kinney) e Lars Frederiksen (Lars Frederiksen and the Bastards).
A arte de Nara foi amplamente integrada na cultura de massas. Enquanto ele é considerado uma figura de culto no seu nativo Japão, o seu trabalho apela a várias gerações e nacionalidades. As suas figuras assombram galerias e museus e adornam T-shirts, cinzeiros, relógios, chávenas e postais. Coléricas e impotentes crianças que insistem em não abandonar o nosso imaginário desde o momento em que olhamos para elas.