Uivo, no Festival Transborda
Ao início, no espetáculo Uivo, uma penumbra revelava a presença, em palco, de três protagonistas.
Um som contínuo, computorizado, começava a deflagrar.
Duas performers, Maria João Costa Espinho e Mariana Tengner Barros, iniciavam uma dança que, em rodopio, descrevia círculos e outras formas complexas no solo, cada vez mais intensas, em torno de uma escultura de organza clara, raiada de cor rosa. No lugar, podiam ver-se outros objetos, como cabeleiras escuras, fragmentos de pedra, alguns vestidos.
Era possível assistir, ao longo do espetáculo, a uma projeção de desenhos de Espinho. Como sulcos desferidos sobre fundo branco, sucediam-se formas redondas que aparentavam seixos, depois seguiam-se sulcos mais pequenos, de modo repetido, como padrões impressos sobre a tela branca. Estes desenhos assemelhavam-se a escritas crípticas antigas, pequenos esteios, ou utensílios pré-históricos. Ao longo da performance as imagens perfilavam-se, desafiando-nos a procurar apreender tudo, de modo a não perder cada estímulo oferecido. Por entre os sons que eclodiam, produzidos em tempo real, fomos visivelmente desafiados a descortinar cada gesto, a decifrar cada ação da dupla, que não cessava de interpretar uma “dança” intrincada, durante toda a performance – e ao sabor do som transformador, e eletrizante, de Jonny Kadaver, que protagonizou um papel modelador do espetáculo, na evocação sonora de passados, presentes e futuros.
Um dos momentos mais belos em palco acontece quando a dupla se junta para desprender a organza que, pelas escassas luzes no palco, cintila e deixa entrever uma trama. Remete para o brilho e riqueza entretecida, fornecida pelo desdobramento infinito de formas, próprio da computação gráfica.
As duas performers estendem a organza e deixam-na tombar sobre o chão. Repetem o gesto em diferentes locais do palco. O tecido, pela leveza, desce lentamente até ao solo, como se fosse em câmara lenta, e revela diferentes configurações. Nestas esculturas em movimento, ou desenhos no ar, formam-se tetos, coberturas, mapas topográficos, paisagens. A música electrónica envolve, e ajuda a fazer aproximações/associações livres no sentido a uma certa imagética digital.
Confrontos entre o natural e o artificial, ancestralidade e futuro, parecem ser uma constante no trabalho apresentado.
Não poderia, depois, dada a relação estabelecida entre as duas performers, deixar de pensar em Marina Abramović, ou nas excentricidades dos velhos irmãos Chapman, quando braços e mãos se contorciam e tocavam, cabelos longos e negros se distendiam, ou línguas se contorciam.
Também me lembraram Joseph Beuys, quando afirmava que o “propósito da arte era libertar o ser humano”[1]. A sua arte, mais do que compreender uma manifestação de habilidades para produzir obras escultóricas, ou instalações, era uma oportunidade para refletir sobre o seu tempo, despertar a interrogação sobre os fenómenos sociais, o quotidiano, os aspetos culturais da sua época[2].
Uivo, de Maria João Costa Espinho, constitui esse clamor, esse pedido urgente de liberdade. Um grito embrionário, e profundo, de cariz inicial. Como em Beuys, sugere-se uma referência a crenças xamânicas, pelo menos os gestos do corpo em palco resgatam alusões a certos rituais, ou atos mágicos originais.
É justamente através dos nómadas da Crimeia[3], que Beuys, o único sobrevivente, é salvo de queimaduras graves, após o avião, em que seguia, se ter despenhado. O contacto com o grupo de tártaros avivou a consciência do artista para uma ideia de verdade e universalidade, antroposófica e espiritual, de superação material, de que Steiner foi o maior cultor[4]. Também uma ideia de linearidade histórica e desenvolvimento técnico é posta em causa, neste acontecimento.
A itinerância interdisciplinar dos espetáculos de Maria João Costa Espinho salienta justamente um processo social[5]. Pela multiplicidade de meios, desenho, performance, instalação, som, desvela sentidos, evoca transformações, convoca a intervenção social, evoca a lucidez[6] e revela significados plurais. Numa estreita relação entre arte e vida.
A um dado momento da performance enceta-se um discurso e fala-se de sistemas binários. O manifesto envolve o espectador na temática mais quente da atualidade, a inteligência artificial.
Os movimentos erráticos e contorcidos dos corpos em palco, as diferentes sonoridades que ecoam no espaço, os gritos profundos, por vezes guinchos que evocam outras espécies animais, adensam a ideia de confronto entre o binómio natural e artificial, inteligência humana versus artificial.
No medo da substituição do homem pela máquina surge a afirmação dos cientistas do que julgam ser ainda da exclusividade dos homens e dos animais: a existência do aleatório, da consciência, do entendimento (compreensão), de interligações, conexões que só os humanos conseguem fazer. Relações entre conceitos. Os computadores podem ser muito sofisticados mas ainda operam segundo o princípio de armazenamento da máquina de Turing. A inteligência é mais do que uma mera habilidade computacional. Compreender, entender, não é um simples obedecer a regras. A vontade própria de decidir o caminho não é computável, não se aquieta no sistema binário de 1s e 0s.[7] É nessa compreensão do humano que o trabalho de Maria João Costa Espinho se configura. Dentro de um modelo experimental, a artista alia a dança ao questionamento da ciência, da filosofia e do mundo.
Os gestos das performers, aparentemente dispares, caóticos, parecem evidenciar a complexidade do cérebro humano, a sua criatividade. Para Freeman[8], o cérebro humano tem a capacidade de responder, de modo flexível, ao mundo exterior, e gerar novos padrões. Por vezes envoltos em erros, em tentativas, mas num sistema aberto e múltiplo de possibilidades. Que possibilita uma realidade não computacional, livre, intuitiva. Exponencial e imprevisível, em contraste com uma realidade computacional “obediente, previsível”. Segundo um artigo da Scientific American[9], no cérebro, a percepção pode ser definida segundo o que fazemos e não no que passivamente recebemos através dos sentidos.
A performance Uivo decorreu dia 17 de abril na abertura do Festival Transborda, no Fórum Municipal Romeu Correia, em Almada.
[1] Rodrigues, J. (2002). JOSEPH BEUYS: Um Filósofo na Arte e na Cidade. Millenium.
[2] Ibidem
[3] Ibidem
[4] Ibidem
[5] Rodrigues, J. (2002). JOSEPH BEUYS: Um Filósofo na Arte e na Cidade. Millenium
[6] Ibidem
[7] Penrose, R, Severino, E. Testoni, I (2022). Artificial Intelligence Versus Natural Intelligence. Springer. Disponível em https://www.researchgate.net/publication/359473024_Artificial_Intelligence_Versus_Natural_Intelligence
[8] Ibidem
[9] Disponível em https://www.scientificamerican.com/article/how-the-brain-constructs-the-outside-world/