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Salaris – Ficções a Partir do Sal, de Maura Grimaldi, Natália Loyola e Victor Gonçalves

Capta essa coisa que me escapa e no entanto vivo

dela e estou à tona de brilhante escuridão.[1]

 

Não é todo dia que vamos a uma mina de sal-gema ver uma exposição de arte. Por si só, a experiência de chegar aos 230 metros de profundidade terra adentro é fascinante. Quando recebi o convite para a inauguração de Salaris – Ficções a Partir do Sal, exposição de Maura Grimaldi, Natália Loyola e Victor Gonçalves, logo imaginei uma paisagem árida, um lugar no meio do nada. Me levou para Minas Gerais, Brasil, terra de onde venho e que o próprio nome indica a presença feroz da extração mineral. Por lá, enormes cicatrizes nas montanhas pelas estradas relembram a violência da exploração contínua que marca o Antropoceno.

A primeira surpresa, ao chegar, foi descobrir que a mina se localiza no centro da cidade de Loulé, no Algarve. São aproximadamente 45 km de galerias embaixo da terra, uma cidade subterrânea. Sobre os infinitos túneis labirínticos estão escolas, cafeterias, igrejas, centros veterinários. Os três minutos de descida pareciam vinte no elevador de 1m², acompanhada de cinco pessoas. Estive em lugares parecidos em sonhos, uma mistura de êxtase e medo, algo como o buraco da Alice. A partir da metade do caminho começamos a ver os sinais do sal, e a sensação latente de nos estarmos aproximando de outra dimensão.

Diferente do que também é possível esperar de uma mina de sal, não encontramos uma paisagem branca como a neve, mas tons ocres, avermelhados, que se sobrepõem às texturas cósmicas. Estalactites revelavam-se por todos os lados, ao mesmo tempo que podiam passar despercebidas, camufladas no úmido cenário. O aspecto sensorial da experiência se faz todo o tempo presente. Diante do encontro da ação humana com a geologia e do confronto entre natural e artificial, as três intervenções artísticas abordam nuances dessa relação. O gesto é também sublinhado em Salaris – Ficções a Partir do Sal, provocando a percepção por outros sentidos.

Victor Gonçalves apresenta duas instalações. O ambiente totalmente escuro, exceptuando a iluminação das obras, causa uma espécie de vertigem e magnetismo ao nos depararmos com Evento Sentinela (2025). 1308 barcos de papel – feitos a partir das páginas do Relatório Final da CPI da Braskem sobre o crime ambiental que aconteceu em 2023, na mina de sal-gema em Maceió, Brasil – ocupam uma plataforma de sal-gema de 128m². Ao fundo, três pontos de luz cor de fogo. Situação Salobra (2025) envolve o espectador desde a entrada da galeria, os blocos de sal sobre plintos de ferro são também canais sonoros; vozes e declarações jurídicas se misturam com o som do caminhar no ambiente urbano de Maceió. Victor transforma documentos oficiais e situações burocráticas em uma experiência visual, sonora e tátil, trazendo à superfície a recente e devastadora tragédia.

Cristal Negro (2025), de Maura Grimaldi, é uma instalação audiovisual. Ao capturar imagens da mina, no breu, Maura ilustra o caminhar sobre o chão que parece de areia, mas é sal. O filme documental mistura temporalidades e aponta contradições a partir dos registros feitos na escuridão. As interferências nas imagens, próprias da filmagem em película, associam os processos químicos analógicos da fotografia com a extração do sal e a presença do elemento no íntimo do cotidiano. Para onde vão os seus vestígios? Suor, excitação, lágrimas. Tanto Maura quanto Victor refletem sobre a memória, da matéria e do tempo, reluzindo do cristal bruto diferentes perspectivas de seus efeitos nas relações humanas.

Natália Loyola apresenta S/ título (2025), uma instalação composta por duas peças que se conectam através do som e da ação. A obra constrói uma relação entre dois ou mais corpos e só existe no que é compartilhado. Com uma placa de metal e um speaker direcionado, o som é revelado a partir do atrito; no sal que desliza e arranha o metal, nos grãos a espalhar-se ou no bloco lançado subitamente sobre a plataforma. O deslocamento provoca uma tensão entre presença e ausência, criando uma percepção escultural do som. Além do aspecto relacional, a obra de Natália desperta a escuta atenta ao que vibra nas profundezas do mundo mineral.

Escavando as diferentes camadas que atravessam o universo natural e tecnológico, vislumbram deste mergulho na terra coincidências do tempo profundo e do tempo atual[2]. Salaris – Ficções a Partir do Sal faz parte do Festival Verão Azul e conta com o apoio da Associação Alfaia e da República Portuguesa – Cultura / Direção Geral das Artes, reunindo três artistas brasileiros com obras site-specific numa deambulação pelo espaço mineiro. A exposição está patente até 16 de maio de 2025.

 

 

[1] Lispector, Clarice. Água viva. Rio de Janeiro. Rocco, 2019

[2] Marques, Nuno. Texto da folha de sala de Salaris – Ficções a Partir do Sal.

Ana Grebler (Belo Horizonte - Brasil) é artista, curadora e escritora. Graduada em Artes Plásticas pela Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG - Escola Guignard) e pós-graduada em Curadoria de Arte na Universidade Nova de Lisboa (FCSH). Participou de exposições coletivas no Brasil e organizou as exposições Canil (2024), Deslize (2023) e O horizonte é o meio (2022), em Lisboa. Colabora com a Umbigo Magazine com ensaios, críticas e entrevistas, e atua nas parcerias internacionais da plataforma. Na intersecção de práticas, reflete sobre a cultura visual contemporânea criando diálogos e imaginários entre espaços e processos artísticos em cruzamento. Atualmente vive e trabalha em Lisboa.

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