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Todos estes, o teu nome: Ra, de Rui Toscano

São doze as portas por onde passas, ó Rá, quando com a luz entre os teus cornos cabeceias a escuridão do submundo, vencendo a serpente branca do caos que visa tudo enlaçar. Ou serias mais como o escaravelho nascido na primeira flor-de-lótus, todas as noites renascido para deslumbrar o mundo em nova aurora? Antes ainda foi semente a flutuar no primeiro oceano, ou ovo original sobre a terra virgem. De tuas lágrimas nasceu a humanidade, de teu intelecto as horas. E se em teu coração se engendram todos os atos, ó Rá, golpeie de luz aquilo que em mim é porta fechada, para que melhor eu possa compreendê-lo, deus de tantas formas que jamais se encontra onde está, que dorme para acordar e morre para viver, senhor do movimento que no zénite é sol, no submundo é carneiro, no princípio escaravelho e humano no fim, vencendo a morte para nos lembrar que nada permanece, embora tudo sempre se repita. Como captar a tua forma? Qual é o preferido dentre tantos disfarces? Na arte egípcia és homem com cabeça de falcão, carneiro ou escaravelho, és disco solar por cobra envolto ou astro de longas asas, és escaravelho empurrando a esfera solar, és felino ou fénix, és barco metafísico, és o olho que tudo vê. Ou estarias justo nos instantes entre as formas, nas soleiras das portas que atravessas, nos intervalos de nosso entendimento? Talvez a tua essência não habite por inteiro nenhuma imagem, estando em todas um pouco, preservando-nos do encantado terror de teu semblante total.

Também a arte egípcia dos hieróglifos busca o equilíbrio entre o particular e o universal, o temporário e o eterno, o movimento e a solidez. Para melhor comunicar a sua verdade simbólica, impunham às imagens naturalistas um disciplinado cânone — são como o sol de Rá, dispersando as sombras confusas da experiência. Seus contornos são seguros e concisos, e não delimitam figuras em movimento, preferindo as permanências. Seu substrato geométrico articula as formas em busca da clareza absoluta, rotacionando os planos para revelar todas as partes em simultâneo, superando as perspectivas parciais de nossa experiência comum: a face e as pernas abertas em perfil, o olho e o torso de frente. Transcendente pois mais real que a realidade, tal arte é o perfeito encontro entre a harmonia estruturada maat e a potência desordenada isfet, vencendo o caos como Rá nos ensinou. Em Ra, também Rui Toscano quer encontrar-se entre a senilidade da pura repetição e a confusão das diferenças desconcertantes. Certos atributos como a articulação geométrica, a presença física no espaço e o contributo do espectador permitem-nos interpretá-las mediante a influência de alguns movimentos abstratos da arte moderna e contemporânea — o misticismo suprematista cujas formas geométricas tencionavam superar a natureza, a pureza do minimalismo que entrelaçou a perfeição das formas absolutas à multiplicidade perceptiva do sujeito, as tensões cromáticas de Josef Albers, a luminescência de James Turrell, a ressonância de Bridget Riley. Mas mais premente é o diálogo com a arte e mitologia egípcias.

Os hieróglifos preenchem os planos arquitectónicos para melhor entrelaçar o real e o sagrado, mediante suas propriedades mágicas transcendendo o espaço por eles contornado. Tal alquimia espacial é também exercitada por Toscano, cujas obras ocupam as paredes expositivas para instaurar uma atmosfera propícia à reflexão exaltada. Quando o espectador se aproxima das luminosas projeções, também os seus vultos as habitam, destacando-se e assimilando-se às suas diversas camadas, misturando o representado e o vivido, o estático e o dinâmico, o matemático e o orgânico. Sendo a sombra uma primeira abstração do corpo, inclusive pelos egípcios entendida como entidade independente, há neste gesto um teor transcendente também presente na arte egípcia, embora articulado através de outras técnicas. Também a simultaneidade de planos na composição de totalidades é por Toscano trabalhada ao articular, em cada obra, a mesma forma geométrica em distintas iterações e perspectivas, compondo uma imagem sobreposta que é derivativa de si mesma. Do urro primordial de Rá, todas as coisas tropeçaram à existência. Em Toscano percebe-se o desejo de compor imagens cuja forma é o tropeço sobreposto do triângulo, do retângulo, do círculo. Mas estariam tais técnicas a serviço da clareza racional egípcia?

Se Platão condenava o naturalismo da arte grega, admirava, entretanto, a pureza objetiva da arte egípcia, que superava a ilusão das aparências mediante as certezas do saber racional, desenvolvendo modelos ideais que garantiam a permanência e santidade dos símbolos. Se o filósofo encontrava beleza apenas nas formas absolutas, decerto apreciava a simplicidade geométrica das pirâmides, cuja forma supera a confusão da natureza para direcionar o espírito do faraó à barca de Rá, que ancorada sobre a ponta do templo espera-o para navegar ao além. As obras de Toscano, embora conservem clareza processual e certa coesão matemática, parecem, no entanto, mais complexas e expressivas em sua distorção formal da geometria perfeita — ao invés de pirâmides, seriam silhuetas desfocadas como as miragens que confundem os peregrinos? E assim como o viajante corrompe a miragem ao dela aproximar-se, também suas obras são alteradas pelos vultos do espectador — se a arte egípcia visa superar o transitório, talvez as obras de Toscano prefiram acolhê-lo. Mondrian preferia linhas retas pois buscava a pureza estável de certas construções mentais. O minimalismo privilegia formas absolutas pois, platónico talvez, rejeita a composição de partes em harmonia. Há também uma curiosa proximidade entre os métodos presentes nos hieróglifos e as técnicas desenvolvidas pelo cubismo, que manipulava a forma mediante múltiplas perspectivas em simultâneo. Mas enquanto a arte egípcia busca a verdade de uma doutrina transcendente, o cubismo tencionava entender a realidade subjectiva de nossos mecanismos perceptivos. Sendo uma análise da imanência, o cubismo articula métodos semelhantes para manifestar conceitos opostos. Se as formas de Toscano não buscam a clareza das construções matemáticas nem a realidade dos factos cerebrais, poderiam conservar o simbolismo da arte egípcia? Estaria Toscano retornando à alegoria divina?

Nestas paredes também vejo as muitas formas de Rá. Primeiro como o branco escaravelho Khepri, na aurora de cada dia. Depois, no zénite amarelo de um sol coeso. Por fim, na aresta do aposento percebo o horizonte por onde atravessas no princípio de cada noite, Atum colérico e deformado em busca da escuridão que haverá de vencer. Quando sol, as suas camadas são todas concêntricas, pois fortalecido estás no topo do céu. Nas aurora e crepúsculo as camadas das obras transbordam, pois, debilitado encontra-se nos instantes de transição. E uma vez no submundo, seus cornos luminosos avançam sobre a penumbra — eu os vejo na obra branca em L, apontados abaixo. Se a arte abstrata moderna visa ser por inteiro auto-referente, a inteligência simbólica nos remove da realidade atual para lançar-nos ao além do objeto. Talvez por isso haja um senso de passagem nas obras de Toscano: no horizonte atravessado por elipses vermelhas, no túnel solar, no espaço aberto pelas linhas-soleira do corno de Rá. Consciente de uma modernidade artística que rompeu com as tipologias da arte sacra, suas obras tentam convergir o abstrato e o figurativo para tanto preservar o senso espiritual de outrora quanto adaptar as suas tipologias tradicionais.

O percurso do espectador não apenas sintetiza a odisseia diária de Rá, como também, dada a própria natureza de nossa locomoção pelo espaço, altera a sua estrutura narrativa: será linear, cíclica, fragmentária ou desordenada a depender do fluxo de sua experiência pessoal — tal relativa liberdade seria execrável aos antigos egípcios, porém mais compreensível em nosso regime atual. Se Aristóteles chamou de catarse a capacidade que a arte possui de expandir e articular aquilo que em nós mantinha-se calado, a relação do espectador com a multiplicidade do deus mitologiza o nosso cotidiano — quem contempla a viagem de Rá explora como se nasce e se morre em três tempos entrelaçados: da aurora ao pôr-do-sol, das cheias às baixas do Nilo, do primeiro ao último dia do ano solar, terminado com a festa de Rá, senhor das transições e dos ciclos.

Como encaixar nosso ritmo humano no ciclo circadiano que regula o metabolismo de todas as coisas? As articulações de Toscano seriam ritmos, ou composições? Compor supõe termos acesso à harmonia geral que estrutura todas as coisas — guiado pelos sussurros do além, do faraó espera-se que ordene na mais perfeita composição este mundo de coisas cambiantes. Já a ideia de ritmo é mais humilde, libertando-nos da necessidade de impor estruturas intelectuais sobre o encanto da existência. Se para organizar o real é preciso contemplá-lo de fora, ao espectador imerso entre os feixes luminosos da mostra resta contemplar os ritmos alegóricos de obras que anseiam a costura entre o particular o universal, reforçando o entrelaço de todas as coisas.

As obras de luz criam um diálogo entre o contemporâneo ocidental e os princípios da arte egípcia que jamais tropeça em fáceis anacronismos. Já as pinturas expostas no fim da mostra dedicam-se menos à uma realização plástica de facto comprometida com os seus preceitos conceituais. Tanto em estilo quanto em interesse, afastam-se um tanto do antigo Egipto para aproximarem-se da própria mostra, como um epílogo auto-referente ou reflexão póstuma, ambas adjacentes — articulando a fantasmagoria e a sobreposição entre figura e paisagem, ou espectador e obra, são antes ilustrações da experiência estética do espectador até então. Tal idiossincrasia revela o que talvez pudesse ter sido mantido em fecundo silêncio, arrefecendo portanto a ponte com toda a enigmática espiritualidade do Egipto, encanto nas outras salas conservado através da ambiguidade expressiva e da manipulação geométrica.

A exposição Ra está patente na Galeria Cristina Guerra até 10 de maio.

Tomas Camillis é autor e pesquisador baseado em Lisboa. Escreve narrativas fictícias e ensaios no contacto entre arte, filosofia e literatura. Possui mestrado em Teoria da Arte pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Nos últimos anos participou de pesquisas, lecionou cursos em institutos culturais, auxiliou na organização de simpósios e publicou em revistas especializadas. Atualmente colabora com o Serviço Educativo do MAC/CCB e com a revista Umbigo.

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