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Three Colours: Flesh de Evy Jokhova, na 3+1 Arte Contemporânea

Evy Jokhova parece ter tudo sob controlo. Quando nos encontrámos para conversar sobre a sua nova exposição Three Colours: Flesh, inaugurada a 21 de março na 3+1 Arte Contemporânea, a artista mencionou casualmente que estava quase a terminar a instalação de outro projeto – o maior até à data – para a 15ª edição do Prémio Novos Artistas Fundação EDP, no MAAT, que abriu apenas duas semanas depois. Quando expressei a minha admiração pela sua produtividade, riu-se e admitiu que tem um fraquinho por um planeamento prévio cuidadoso.

Three Colours: Flesh foi pensada ainda em 2020 como parte de um projeto expositivo dividido em três partes. O conceito desta série foi adotado por Jokhova a partir da trilogia Three Colours de Krzysztof Kieślowski – uma investigação cinematográfica sobre a complexidade subtil das emoções humanas. À semelhança dos filmes de Kieślowski, cada exposição do ciclo de Jokhova é marcada por uma determinada cor que simboliza uma emoção específica e um aspeto das relações humanas.

A exposição inaugural da série Three Colours, Green, foi apresentada em 2022 na Galeria 3+1 Arte Contemporânea. A exposição abordou a urgência de encontrarmos formas de coexistência entre humanos e não-humanos, refletindo simultaneamente sobre a colaboração, a comunidade e a dependência mútua. Seis meses depois, Three Colours: Shadow, o segundo capítulo do projeto, foi inaugurado na Galeria Municipal de Arte de Almada. Centrada no cinzento – ou numa cor que se esconde na ausência de luz – a exposição evocava a intimidade e o secretismo que moldam os espaços privados. O título da última fase da trilogia, Three Colours: Flesh anuncia a paleta escolhida: os tons de vermelho e rosa que remetem para o domínio do corpo.

Evy Jokhova evita interpretações diretas do seu trabalho, encenando um encontro mais lúdico com a carne. É o que acontece no close-up sensual dos frutos gordos e congelados; na imagem minúscula de um seio que espreita de uma pintura em pequena escala; na foto-instalação irónica que representa um cão nu segurado por um jovem nu; e nos vidrados cor de vinho das cerâmicas em forma de flores carnívoras. Um tríptico de grandes dimensões intitulado Three Colours: Beastly, inspirado na pintura islâmica em miniatura, apresenta um elegante ornamento composto por braços, olhos e cabeças desencarnados, em estilo cartoon.

A linguagem visual de Jokhova é cativante. No entanto, quanto mais tempo passo na galeria, mais me vejo presa num diálogo interno sobre o corpo e o olhar. Uma poltrona luxuosa está colocada em frente a Three Colours: Beastly, como se convidasse o visitante a instalar-se e a perder-se na observação de uma imagem ornamentada, caleidoscópica e hipnotizante. No entanto, após uma análise mais atenta, o padrão da peça transforma-se num banho de sangue, e as delicadas lavagens de tinta no algodão tingido à mão aproximam-se de vísceras humanas. Quanto mais olho em redor, menos certezas tenho. Não estará o ventre do cão demasiado exposto? O intrincado ombré carmesim-rosa dos têxteis não parece tingido com algo mais corpóreo do que tinta? Three Colours: Flesh reflete sobre onde – e como – são traçados os limites do corpo.

Jokhova organiza sempre as suas exposições prestando atenção à forma como o visitante se relaciona com o espaço e as obras de arte. Em Three Colours: Flesh, Jokhova guia habilmente o espetador através da utilização de diferentes volumes, formas, meios de comunicação e dos acentos vermelhos e cor-de-rosa dispostos ritmicamente no espaço. Criada na cidade e frequentemente em movimento, Jokhova desenvolveu, desde cedo, um interesse duradouro pela forma como as paisagens materiais moldam a consciência e a emoção humanas. “Os objetos são dispostos no espaço muito intencionalmente – tenho em mente o corpo e a forma como as coisas fluem, como os olhos se podem desviar”, explica relativamente à instalação das suas peças. No entanto, para Jokhova, a conceção de um esquema de exposição conciso não corresponde à elaboração de uma narrativa pré-determinada; trata-se, antes, de um mapeamento das múltiplas formas como o público pode interagir com o projeto – quase como a construção de um cenário teatral.

Há, de facto, um ponto em que o espaço de exposição se aproxima o mais possível de um cenário performativo literal. Cada uma das exposições Three Colours de Jokhova é acompanhada por um jantar artístico realizado várias vezes ao longo da exposição. Em Three Colours: Flesh, o jantar é realizado na maior obra da artista na exposição – Avatar: The Way of Consumption – uma instalação de cerâmica maciça sob a forma de uma mesa decorada com azulejos, vasos de barro expressivos e figuras. Entre estas, encontram-se pequenas esculturas de serpentes, um motivo recorrente na prática de Jokhova. A ambiguidade da serpente atrai-a: símbolo de pecado e perigo no Ocidente, mas associada à sabedoria e à renovação nas tradições orientais. As cobras na mesa parecem esfomeadas.

A refeição começa com uma apresentação de Jokhova e da chefe Francisca Paiva, que colaborou com a artista em todos os jantares da série Three Colours. Os convidados são equipados com talheres de latão feitos à medida, desenhados pela artista em colaboração com o designer Sebastião Lobo. Estes objetos – ferramentas delicadas, semelhantes a jóias, usadas diretamente nos dedos – funcionam como extensões do corpo. No final do jantar, a sua utilização torna-se já uma segunda natureza, como se o corpo sempre tivesse conhecido esta forma híbrida.

À medida que os pratos começam a chegar – na sua maioria vegetarianos, e todos confeccionados em vários tons de vermelho – a mesa torna-se cada vez mais animada. Jokhova e Paiva servem a comida, colocando-a diretamente sobre a superfície de cerâmica. Os convidados, equipados com as suas mãos-talheres, penetram nas texturas suaves e macias, espalhando sumos e pedaços vermelhos. O resultado situa-se algures entre um banquete e um ritual, elegante e visceral. Após dois pratos servidos, a mesa assemelha-se a uma cena de carnificina refinada – parte bloco de talho, parte banquete barroco – uma estética que teria encantado cineastas como Ken Russell.

A própria artista retira-se pouco depois de fornecer ao público os utensílios de refeição únicos. A partir desse momento, a performance desenrola-se organicamente, impulsionada pelas interações entre os convidados, incluindo eu própria, à medida que trocamos impressões sobre o gosto, a tatilidade e a incorporação da refeição. No final, a orquestração meticulosa e o planeamento cuidadoso de Jokhova resultam precisamente uma genuína sensação de liberdade criativa – transformando uma estrutura controlada num encontro espontâneo.

A exposição Three Colours: Flesh pode ser visitada na 3+1 Arte Contemporânea, em Lisboa, até dia 17 de maio. A performance referida no texto decorreu dia 29 de março. A última performance inserida no contexto desta exposição terá lugar dia 10 de maio às 17:00h.

Ekaterina (Katya) Savchenko é uma curadora, escritora de arte e educadora sediada em Lisboa. A sua prática curatorial envolve-se de forma crítica com a materialidade, a memória e as narrativas históricas dominantes. Atualmente, dá aulas no More Than a Project, um artist-and-curator-run laboratory.

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