Jardim do Império, de Délio Jasse
Quem tem um arquivo, tem poder. Porque quem tem um arquivo é capaz de controlar a sua narrativa histórica e a daqueles que direta ou indiretamente por ele passaram. Ou seja, o arquivo detém uma soberania muitas vezes insidiosa, capaz de reter um passado agrilhoado nas malhas de antigos impérios e histórias pretéritas, cujo presente e futuro continuam por definir.
E esta noção torna-se tanto mais cristalina quando percebemos que grande parte dos arquivos e acervos de ex-colónias estão conservados nas antigas metrópoles imperiais. Isto é, as ex-colónias, se quiserem ser senhoras do seu passado, terão, impreterivelmente, que passar pelos crivos das instituições museais e arquivísticas do velho poder. Toda a informação e investigação feita sobre esses arquivos, toda a tinta escorrida a seu respeito, fica ali – aqui –, longe dos seus referentes, inacessíveis a muitos deles, e só a sua desconstrução teórica e reprodução pode vir a ser devolvida à origem – pois que a condição pós-museal de Françoise Vergés ainda está por vir, e o museu universal parece resistir a todos os pedidos de restituição e devolução.
Por ora, a decolonização dos arquivos requer esforços que têm frequentemente passado por artistas – agentes por natureza capazes de desocultar, transformar e reimaginar as matérias de que se faz a História, as identidades e o tempo, explorando as minudências legais, esmiuçando as políticas nacionais, mesmo que para tal seja necessária uma perigosa, mas necessária, manobra subversiva. Ou, em alternativa, fazer da cópia e da reprodução um original, invertendo, deste modo, as lógicas hierárquicas e estanques de valor artístico e arquivístico.
A premissa base da obra de Délio Jasse parece ser, em parte, essa: através da cópia e da tradução das imagens e textos arquivísticos, Jasse opera uma inversão e, por conseguinte, complexificação desse material. A “posse” – um termo que depressa desperta um sentimento nacionalista ou identitário – é tão relevante quanto a sua dissolução através das técnicas de reprodução modernas. Pois que à aura mastodôntica e governamentalizante dos arquivos se sobrepõe outra, desta vez condizente com a virulência hipermediatizada da imagem, difícil de conter, difícil de se deter, porque ganhou a plasticidade infinita da comunicação de massas. A construção do contexto imagético, aquele que informa a imagem – os metadados, em linguagem moderna e corrente –, está agora nas mãos de quem dela se apropriar. Os museus e arquivos – fábricas de civilização e modernidade, como foram durante décadas e séculos apelidados – vêm-se agora a braços com o limite da sua criação, que os obriga a retratar-se na construção de uma cultura em tudo minada por um complexo colonial, capitalista e patriarcal. Já não basta descolonizar ou retirar de cena o domínio político de um estado sobre outro; importa antes decolonizar: analisar e desmontar os mecanismos e estruturas que perduram em gestos, linguagens e gerações, bem para lá do processo de descolonização e de independência política.
Jardim do Império, patente na Galeria Filomena Soares, é o inferno verde dos antigos impérios. O que parece ser o idílio de um certo regime, que tanto estetizou o exótico e dele se apropriou para a conceção de uma narrativa que esconde, com contornos suaves, a violência do colonialismo, manipulando sentimentos de pertença, mas também de grandeza, por exemplo, é aqui devolvido como um abanão sistémico. Os seus constituintes despertam, de repente, para uma estrutura corrompida que eles próprios, por atos e omissões, ajudaram a construir ou a perpetuar. Ao puxar pela memória do Jardim das Delícias de Hieronymus Bosch, em que o prazer se revestia de uma inocência infantil, de pequenas criaturas brancas entregues aos deleites dos sentidos, para depois se remeterem ao inferno dessa animalidade sensorial, Jasse traz para a contemporaneidade a representação da culpa, do pecado e das idiossincrasias humanas, num contexto colonial, pós-colonial e decolonial. O que foi durante muito tempo um recreio para caça, banhos de sol, exploração e extração de recursos, é agora um recinto feito com as sombras e sobras desse tempo.
A força do tratamento da imagem de arquivo, recorrendo a técnicas de cianotipia, impressão, revelação fotográfica ou serigrafia, parece tornar-se viral, neste jardim. É fácil imaginar estas reproduções em cartazes, posters, revistas, manifestações, em linha com a economia de recursos instalatórios. Há como que um uso da imagem e dos mecanismos de visualização e reprodução que é fundamentalmente ativista, ao fazer tábua rasa do original e da noção de valor a ele associada. Por esse motivo, a obra de Jasse não poderá ser senão contemporânea – quer dizer, faz da contingência da história, e dos seus tropos e dispositivos construtivos, uma forma ao mesmo tempo artística e política. À investigação arquivística precede e sucede uma ontologia da imagem e respetiva disseminação – sobretudo a fotografia e o seu uso na construção de identidades, relações de poder, economias de turismo e de elites. O olhar fotográfico é o olhar do branco sobre o negro. O negro é objetivado pela lente da câmara fotográfica predadora, depois impresso e divulgado à sua revelia, para então se construir uma ideia de superioridade racial, propalada em manuais e arquivos privados de teor mais ou menos etnográfico ou antropológico.
O texto que acompanha Jardim do Império, escrito por Ana Balona de Oliveira, constitui um curto mas imprescindível ensaio sobre a prática artística e investigativa de Délio Jasse, ao efetuar um exercício de desconstrução do modus operandi colonial e ocidental segundo a obra do artista. O ensaio conclui com um paradoxo interessante – o de um país colonizante, atualmente colonizado pelo norte da Europa, que vê em Portugal um excelente negócio para os que se aproximam do pôr-do-sol.
Jardim do Império, de Délio Jasse, está patente na Galeria Filomena Soares até 15 de maio.