A casa da colecionadora, de Carla Filipe
Na casa montada pelas mãos e memória de Carla Filipe, as paredes foram construídas de fragmentos — desenhos, colagens, palavras — que se entrelaçam para revelar, não um inventário de objetos, mas uma genealogia de experiências ocultadas, esquecidas, marginalizadas. É uma coleção de gestos de resistência que nasce na galeria Jahn und Jahn.
A artista recompõe, pela justaposição de imagens e palavras, mecanismos históricos de controlo e vigilância que disciplinaram o corpo feminino, mantendo-o ora enclausurado na experiência doméstica, ora exposto como espetáculo e objeto de desejo. A colagem torna-se uma técnica de insurgência que sobrepõe tempos, atravessa narrativas e rasga o contínuo da história que foi escrita para abrir fissuras onde outras vozes possam emergir.
As séries Metamorfose (2023-2025) e Religião, perversão, tesão (2016) expõem a fragmentação do corpo e a subversão dos seus códigos de representação. As imagens recortadas, apropriadas e reconfiguradas, atravessam iconografias distintas — religião, pop culture, representações históricas e contemporâneas da mulher — entrelaçando o passado e o presente. Em Religião, perversão, tesão (2016) a artista confronta diretamente dispositivos históricos de controlo da sexualidade, desafiando as fronteiras entre o sagrado e o profano, o culto e o desejo. A colagem de imagens de corpos femininos em poses eróticas sobre arquitetura religiosa produz uma tensão entre claustro e libertação, submissão e insubordinação. É na Igreja enquanto espaço de repressão que Carla Filipe imagina possibilidades de reinscrever o desejo como potência criativa e de revolta.
Esta casa é um lugar de transformação, de reescrita de narrativas, de ativação de memórias esquecidas. Os três trabalhos da série Auxiliar de memória: fragmentos sobra a história da mulher (2025) são exemplares nesse sentido: aqui, a artista propõe uma cartografia das mulheres pertencentes à classe trabalhadora, durante o Estado Novo – telefonistas, operárias, empregadas domésticas, enfermeiras. Feitas de revistas, jornais e materiais de arquivo, as colagens não apresentam uma ordem evidente, sugerindo terem sido construídas de forma intuitiva, e não à luz de um arquivo tradicional. A colagem sobrepõe camadas e cria zonas de conflito visual, numa tensão entre o visível e o invisível. O gesto manual, os traços rápidos e as palavras escritas que inundam as composições, sugerem um arquivo pessoal que é também coletivo, afetivo e político. A artista não parece oferecer respostas, mas antes propor várias pistas e memórias, que o espetador é chamado a interpretar e completar.
Através da escrita gráfica e do gesto insistente de desenhar, Carla Filipe reivindica para o corpo feminino o direito à agência, vulnerabilidade e ao prazer. Em Discurso fragmentado (2016), vemos a palavra desenhada em letras grandes e negras, composta em frases, por vezes em inglês, por vezes em português, que sugerem pensamentos e slogans. A escrita é irregular e carrega consigo uma fisicalidade quase sonora, como se pudéssemos ouvir as palavras serem gritadas. As mensagens abordam temas de poder, identidade e resistência, mas acima de tudo, a dificuldade de encontrar um espaço de pertença na comunidade.
A série Corpo-mente (I) e (II) traz-nos um núcleo de imagens onde o corpo feminino surge de forma fragmentada e simbólica. As figuras são desenhadas com linhas pretas fortes, algumas vezes preenchidas com sombras densas, outras vezes deixadas em contornos abertos. Entre estes desenhos surgem textos que reforçam a reivindicação do prazer e da autonomia corporal, como em You are sexual, remember (2015-2016), que recorda que a sexualidade é também uma linguagem de resistência e de emancipação. Em O impulso sobre a comunidade (2015-2016), a artista aborda diretamente o sentimento de pertença e de alienação dentro da experiência coletiva. As frases revelam um desejo de comunidade que encontra a frustração: “I have the impulso to work to the comunidade! But I never found this comunidade.”
Neste conjunto de obras, o corpo e a palavra aparecem desfeitos — as figuras nunca se apresentam inteiras, as palavras também se interrompem, hesitam, ou misturam diferentes línguas —, exprimindo conflito e rutura. Esta linguagem formal materializa o próprio tema que a atravessa: os conflitos estruturais que moldam a experiência de ser mulher na sociedade contemporânea.
A casa da colecionadora apresenta-se como uma construção crítica sobre os modos de arquivar a memória e o corpo. Carla Filipe substitui a ideia tradicional de coleção por um processo de justaposição de fragmentos que expõem conflitos históricos e sociais. A casa torna-se o espaço onde se inscrevem narrativas descontinuadas sobre género, poder e resistência, impondo ao espetador a tarefa de reconstruir sentidos a partir da ruína.
A exposição está patente na galeria Jahn und Jahn até 17 de maio.