O instante antes de tudo: Incipit de José António Quintanilha
No Laboratório de Química Analítica da Antiga Faculdade de Ciências, hoje espaço expositivo do Museu de História Natural e da Ciência, José António Quintanilha propõe uma arqueologia do visível que não recua apenas aos primórdios da imagem, mas aos primórdios do próprio humano. A exposição Incipit convoca a ideia de começo — não como ponto fixo no tempo, mas como um princípio que se repete e se reinventa, tanto no gesto artístico, na investigação científica ou na própria condição de ser humano
Nas duas grandes ampliações analógicas que compõem Origens Visíveis #1 e 2#, Quintanilha recupera a figura de Lucy e do seu congénere masculino — ambos Australopithecus Afarensis — a partir de réplicas museológicas. A textura densa e quase táctil das imagens, confere-lhes um peso temporal que as aproxima do arquivo e do vestígio. O que vemos não é apenas uma reconstituição do passado, mas uma interrogação sobre os modos como se dá a ver ao presente. Lucy, fóssil emblemático da evolução humana, surge como um espelho especulativo. Olhar o seu rosto reconstruído é reconhecer algo de nós próprios que resiste à identificação imediata. É nesse intervalo que a obra opera: entre a familiaridade e a estranheza. É claro que a imagem sugere um reencontro com as nossas origens, mas nada desse reencontro pertence ao campo da nostalgia. Neste encontro surgem inquietações que nos remetem para a existência: afinal, quem somos nós se não uma sucessão de tentativas de nos representarmos a nós mesmos?
É esta mesma pergunta que atravessa Modus Operandi: Ciclos e Transitoriedade, instalação constituída por dois projetores de slides que contêm 80 diapositivos cada, projetados em contínuo, mas com tempos diferentes. As imagens incluem rostos humanos, esculturas clássicas, animais, paisagens e cenas urbanas, e sucedem-se como fragmentos de um pensamento visual em fluxo. A cada nova sincronia gera-se uma relação efémera, uma associação momentânea entre duas imagens que não foram concebidas para estar juntas, mas que se encontram. Há algo de profundamente humano nesta instalação: a tentativa constante de criar sentido a partir do acaso, de ligar uma figura a outra, um gesto a um lugar, um rosto a uma memória. A presença constante de corpos e rostos, mesmo quando mediada por esculturas ou outras representações, reforça essa obsessão identitária.
O som mecânico da troca de slides marca o tempo como uma pulsação quase ritual. Cada clique anuncia o fim de uma relação e o início de outra, numa sucessão exaustiva de possibilidades combinatórias, onde a repetição de pares de imagens acontece apenas a cada 12 horas. Nesse ciclo, Quintanilha opera a montagem como uma coreografia da espera e do acaso, em contracorrente à velocidade com que hoje consumimos imagens.
Pensar a origem é confrontar um limite. Não se trata de um regresso idílico a um ponto inaugural, mas de uma inquietação fundamental: de onde viemos, e o que significa ter começado? A obsessão com a origem, tão presente na arte como na ciência, revela uma tentativa de nomear aquilo que nos escapa. A origem é um lugar de tensão entre o que somos e o que deixamos de ser, onde cada gesto de procura pelo princípio é, também, um gesto que reconhece a possibilidade do fim. E talvez seja precisamente por isso que os começos nos fascinam, porque nos lembra que existimos no intervalo entre o que teve início e o que terá fim. A escuta da origem é, afinal, uma escuta do tempo e do modo como este nos atravessa.
O título da exposição, Incipit, longe de remeter apenas ao início literal de algo, evoca a potência de todos os começos. A origem não está atrás de nós, mas ao nosso lado, a repetir-se em cada gesto de ver, em cada tentativa de atribuir sentido ao que somos. Lucy, fóssil e figura, projeta a sua sombra lembrando-nos que fomos matéria antes de sermos nome, que cada início é também uma pergunta sobre o fim, porque olhar para a origem é pensar a finitude.
A exposição de José António Quintanilha está patente no Museu de História Natural e da Ciência até 4 de maio de 2025.