A Pele Mais Profunda
{1} Tens aqui a minha tentativa de conservar o tumulto em mim instaurado e o que significou para mim, em meus tenros vinte anos, abandonar as construções cerebrais do concretismo brasileiro por meu mestre então promovidas em prol da putrefação de Francis Bacon, que me dizia algo sempre incómodo pois suspeito das mais belas faces, como sob elas recolhida estivesse a decadência, a morte que eu depois entrevi na Odalisca de Ingres ou na Vênus de Ticiano.
{2} A viscosidade do pastel seco utilizado na maioria destas obras serve bem à sensação de letargia deste mundo gorduroso de limites desgastados, cujas criaturas derretem-se umas nas outras pois intolerantes ao peso de sua própria identidade, buscando a realização de novas monstruosidades no exercício de um hibridismo que é tanto a mais pura forma de esperança quanto o pânico da solidão. Difícil não contemplar a exuberância cromática nas mãos inchadas da artista, que sob o calor de seu estúdio decerto passeou os dedos suados sobre as superfícies e impastos no papel. Tal espontaneidade é recompensada pelo volátil pastel que tão bem traduz esta decadente expressividade de gestos enérgicos, em sua lentidão similar ao movimento das figuras quando se aprofundam entre si, como se o processo artístico assimilasse a condição das coisas retratadas, acentuando as semelhanças entre ambos os mundos. Tal preguiçosa agilidade é, como o frémito de uma paixão trágica, cansada demais para se rebelar contra o próprio desespero.
{3} Penso na Terra Devastada de T.S. Eliot. Filho do homem, não podes dizer nem supor, pois conheces apenas um punhado de imagens partidas. Como recompor, através desta cacofónica constelação, o tecido do real? Fora de qualquer contexto geral, suas criaturas são meros pedaços de corpos cortados, fragmentos perdidos de totalidades ocultas, prisioneiras de situações em colapso — mas se o ser é apenas entendido à luz de suas circunstâncias, como reconhecê-las então? Tal vertigem impede a carga representativa e os atributos narrativos típicos da tradição pictórica. Sem história a ser contada ou modelos a serem reconhecidos, suas figuras tornam-se ícones de uma monumentalidade quase tenra pois vulnerável em sua delicadeza, através da qual conseguimos expandir nossa compreensão, exercitando novas perspectivas sobre a sua natureza. Seres abstraídos tremem em desejo, e de sua solidão eu talvez sinta pena, vendo-nos todos ali. Há grandeza em sua pequenez, humanidade em sua estranheza, energia em sua constrição, mas nunca sinfonia em sua dissonância — o seu drama é justo a busca por totalidades num real comprometido com a quebra. Sem dúvidas todos valorosos procedimentos artísticos, mas pode o pintor promover inovações à custa de suas figuras? A moralidade adentra o simulacro? Em seus olhos cegos eu vejo primeiro indiferença, depois desespero, depois exaustão. Muito se diz que Shakespeare jamais julgou seus personagens, mas talvez T.S. Eliot desgostasse de Hamlet pois o bardo tenha dado demasiado espaço ao príncipe.
{4} Mais do que simples agrado à juvenil perversão dos antigos, na Grécia clássica o nu artístico tem como valoroso papel convergir o cósmico e o erótico: são as proporções perfeitas da estátua que nos revelam a harmonia matemática de um universo que nos seduz a superar a solidão, para ao todo pertencer. Que interesse teriam, portanto, no uso sagrado do peplos, túnica retangular a cobrir o corpo perfeito? A inteligência grega, amante da clareza, do erótico e do intelectual, não favorece a força do implícito — já os vestidos lisos dos santos ocultam seus corpos não só para privilegiar o espírito, mas também para promover um real em essência misterioso que seduz através da ausência. Para melhor medir a real escala de nossa atual frustração, Carvalho converge ambas as tradições: remove o peplos para no corpo desnudo encontrar não o espelho estelar, mas um decepcionante punhado de membros que reforçam a nossa pequenez ante o paradoxo da existência. Ao invés da beleza contemplada, esta nudez é a vergonha de sentir a própria feiura condenada pelos olhos do mundo — afinal sentimo-nos todos não como o mármore, mas como o homúnculo, distorção anatômica que aumenta nossas zonas sensíveis como se o prazer físico fosse superior ao discernimento cósmico. Similares às suas figuras, somos a flor aberta das fúteis sensações, cuja tragédia talvez seja buscar a redenção através do tato.
{5} Este viscoso universo relaciona a gordura dos órgãos, a vulgaridade das frutas, a boçalidade das flores e a energia dos corpos celestes. Todas as frutas são os ventres das árvores que doam seus fetos aos famintos, sendo as flores as genitálias dos vegetais ávidos para exibir ao mundo a sua libido. Tamanho despudor quase faz-me sugerir a proibição de menores em floristas, estufas e jardins. Engana-se quem vê no chapéu de Carmem Miranda um alegre tropicalismo — cobre a cabeça com a cornucópia do mundo para alertar-nos da inevitável vitória dos impulsos naturais sobre o nosso frágil intelecto. Libertos da metódica gaiola da racionalidade, estes corpos pintados perdem-se numa desordenada exuberância, repulsiva como este cosmos que persevera não mediante a fina estratégia, mas o excesso de fecundidade, como se o alicerce do universo fosse uma surda libido atenta apenas às necessidades de sua genitália. Sendo a estupidez um dos tópicos de sua obra, podemos entendê-la de três maneiras: a ignorância ante as dinâmicas cósmicas, a inconsciência de nossa mecânica corpórea e o superficialismo de suas profundas pinturas.
{6} Cansadas do desespero ou à senilidade sucumbidas, nas últimas salas as obras abandonam o senso trágico para adotarem uma grotesca inocência. Em panoramas de ritmo permissivo e temperamento lúdico, entrelaçam membros decepados e fluidos corpóreos para divertirem-se com nossa finitude. Tal irreverência escatológica sugeriu-me a natureza pop de certas propagandas em canais infantis ou as texturas de roupas divertidas. Seus traços delicados e tons abertos acentuam o cinismo pois unem a pureza infantil com a repugnância dos cadáveres. Seria esta mostra a experiência de uma criança em veraneio que, sentada na escaldante areia com o sorvete derretido nos dedos, num rompante epifânico entrevê a repugnância de um cosmos fútil? Se as grelhas infindas de Mondrian transbordam as molduras para promover uma racionalidade que supera os limites naturais, estas obras perpetuam dissonantes padrões para sinalizar o absurdo de buscarmos sentido num universo onde tudo se mistura numa sublime orgia de corpos profanos. Tal erotismo é incapaz de seduzir pois apenas mecânico, seus gestos como hábitos involuntários de corpos sem vida. Pois não só de Mondrian se faz a transcendência — o prazer erótico é uma inutilidade evolutiva que nos lança além da biologia: quem contempla o sexo dos animais percebe a essência pragmática de um cosmos que se perpetua sem investir no próprio prazer.
{7} Como o aparato digestivo que se dobra para melhor se cobrir da bile que facilitará o contacto, nestas obras tudo é convergido na pele, mas apenas para, na superfície, sufocar. Também o pânico de El Greco, precoce moderno pois atento à concretude mesmo das coisas divinas, ponderava a insuportável densidade que o nosso materialismo promove. Seu Jesus estende os braços não para aproximar-se de Deus, mas para afastar o peso daquele céu, respirando enfim. Assim constrangidas estão as figuras de Carvalho, embora falte-lhes a elegância do Cristo. Em cada pintura subsiste todo o sufoco do mundo, como palcos que intensificam a experiência, mas impedem que ela se expanda. Oposto à entropia, este real quer convergir-se de volta à máxima densidade — corpos maleáveis em espaços impenetráveis, a agonia das figuras vai da submissão ao terror.
{8} Talvez ainda mais deslumbrante que a harmonia grega seja o mundo óptico contemplado pelos teólogos que, enfatuados pelo espectro homogéneo da luz divina, entendiam o real como o jogo de reflexos das incontáveis faces de um mundo cristalino. Também aqui há certas obras cujas cores não brotam da matéria mas são rebatimentos de luzes externas, embora o efeito não cause encanto mas confusão — orgia de tons já desprovidos de origem, perdem-se numa etérea devassidão cuja leveza tanto contrasta com as viscosidades do pastel quanto reforça a claustrofobia das cenas. Eternos peões numa partida grande demais para sua compreensão, fazem parte mas não sabem do quê. Já noutras obras o contraste cromático entre figuras e fundos de uma espessa estridência enfatiza talvez a desconfortável histeria de não pertencer às circunstâncias nem delas conseguir desvencilhar-se. Entre o sufoco do ar coagulado e a vertigem do cintilante labirinto, onde situar a nossa inquietude?
{9} Uma anestesia por excesso de estímulos é a conquista dos que heroicamente encaram a orgia cósmica, pois estupefactos pelo espancamento galáctico. Tal sublime terror transforma mesmo o mais subtil dos toques na áspera delícia de uma farpa no ânus. Mas há transcendência na exaustão, como se o cansaço absoluto fosse a fronteira final apenas vencida pelo espírito. Talvez por isso estas obras conservem um senso de santidade apenas disponível aos que vêem através da dor. Se tais figuras não contém a graça das almas nem a sofisticação dos falsos profetas, seriam então as carcaças deixadas para trás pelos espíritos transcendidos? Como quando um fiel contempla o divino através do pálido cadáver, seu pessimismo libidinoso promove um otimismo espiritual. Este real inebriado de contactos, mas carente de afetos talvez seja o retrato da redenção.
Peplum, de Francisca Carvalho, está patente na Fundação Carmona e Costa até 3 de maio.