Voz que arde, voz que mergulha: Julianknxx, Tristany Mundu, Diana Policarpo e Francisca Rocha Gonçalves em coro no CAM
No princípio era o verbo. Na origem da cena — antes mesmo do herói —, o coro. Muito já se escreveu acerca do seu papel multifacetado na tragédia grega: entre um “espectador ideal” — a quem cumpriria, meramente, a função de comentar o desenvolvimento da narrativa — e ator — centro privilegiado que conduz, também, o devir dramático —, o coro encarna, em última instância, a própria respiração comum da pólis. Testemunha e consciência coletiva, canta a cadência do lamento e da resistência, tensionando os dilemas éticos e sensíveis que se presentificam pela voz, uníssona e espessa. Mais do que referir a um movimento ritual e performativo partilhado, a etimologia da palavra “coro”, possivelmente vinculada à raiz khor — demarcação espacial, circularidade —, alude, também, às dinâmicas de um território, ao contraste entre um dentro e um fora.
Todas estas dimensões — da reverberação comunitária no canto a uma profunda consciência sobre o lugar e os seus procedimentos de exclusão — estão latentes no trabalho de Julianknxx, que apresenta Coro em Rememória de um Voo no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian. A exposição dá continuidade ao projeto itinerante do artista serra-leonês, que já percorreu 6.500 quilómetros e nove metrópoles europeias, ao longo de um ano, em contacto com as histórias coloniais e com diferentes músicos e coros em cada cidade. A prática de Julianknxx, é verdade, encontra-se melhor acomodada nas tradições orais africanas — referência mais fiel do que aquela à tragédia grega —, sobretudo no que toca a uma particular atenção à escuta e à sobreposição cumulativa de perspetivas (a um só tempo individuais, locais e globais). Efetivamente, tal relação torna-se ainda mais forte quando consideramos as afinidades tão estreitas entre a voz, o luto e a pertença — a música como despertar de todos aqueles que alguma vez já a cantaram. A unicidade de um timbre singular, enfim, repartida por mil respirações; em cada fôlego, todos os sopros derradeiros que o precederam.
Recordar (com todas as nuances também inventivas que implicam a lembrança) uma canção, ou a vibração de uma voz, é uma “procura ativa”, “um trabalho de exploração do passado através […] do corpo vivo”, escreve Caroline Gatt. Pelo canto, “os mortos falam, […] estão presentes sob a forma de um enigma, um mistério, que mantém viva a abertura ao desconhecido.”[1] Assim, a operação vocal implica um confronto com aquilo que de mais íntimo e espectral nos habita e extravasa, sendo a voz este cruzamento infamiliar entre “imaginação, desejos e experiências pessoais”, a incluir o que não lembramos ou gostaríamos de lembrar, o que tensiona os músculos do corpo, o que impõe silêncio e bloqueia o fluxo do som.
Entoadas em grupo, as letras compostas colaborativamente nas criações de Julianknxx suturam o ritmo da vida e da morte, mas, acima de tudo, da presença que resiste à ausência. O vermelho rutilante das túnicas que veste o coro remete, talvez, a esta força vital, chama e apelo. Ao mesmo tempo, é o encarnado do sangue, vestígio da violência, trauma fatal. A cor derrama para a mostra de Tristany Mundu, artista multidisciplinar e produtor musical português de ascendência angolana. Em Cidade à volta da Cidade, a primeira individual de Mundu, circulamos por entre bandeiras que “contestam […] uma construção […] fraturante de nação”[2] e estampam as vizinhanças invisíveis da capital portuguesa, trazendo ao ver e ao ouvir o quotidiano e as geografias afetivas da Linha de Sintra.
Do fogo à água, passamos às geografias das Ilhas Selvagens, com Diana Policarpo, e do rio Tejo, com Francisca Rocha Gonçalves. Lado a lado, como uma sequência num circuito aquático, em ambas Ciguatera e Interferências no Tejo, respetivamente, aguçamos os sentidos para mergulhar no escuro, tocar a humidade e ouvir as rochas e os peixes. Na primeira, somos tomados pela grandeza de uma escultura — de uma pedra — a preencher a sala de exposição na sua quase totalidade, forçando a circulação pelos arredores, o olhar às topografias e detalhes rugosos: uma ponta mais severa, uma textura mais áspera, uma gota de água a cintilar. A experiência transporta-nos para uma espécie de gruta e convida-nos para mais e mais dentro (embora sintamo-nos também sempre num fora, em qualquer lugar que não o de uma galeria branca), revelando um interior cinético. Cinema geológico, literalmente. Nos ecrãs, que parecem ter sido talhados e lapidados do âmago pedregoso, descobrimos narrativas que especulam sobre ciências e ficções, modos insulares de habitar o mundo, cuidado e contaminação interespécies.
É também um dentro que desvendamos na instalação de Francisca, uma imersão sensorial que nos incita a interromper a verticalidade, acender os ouvidos e (des)afogar a imaginação — deitados, de olhos fechados, aparecem-nos as profundezas insólitas do Tejo, com todos os seus trânsitos e perturbações: ouvimos e sentimos “as ondas, o deslizar dos seixos, o movimento da areia, os estalidos dos camarões e a vocalização dos peixes. Estamos igualmente expostos às interações entre machos reprodutores que chamam dos ninhos – como o xarroco – e ao comportamento em coro de espécies, como a corvina e a invasora corvinata […]”. Navios e outros agentes de poluição (acústica, mas não só) não são excluídos do arranjo. Afinal, o que canta o coro da tragédia ocidental contemporânea?
No CAM, e em ordem cronológica de encerramento, Cidade à volta da Cidade está patente até 5 de maio; Interferências no Tejo, até 19 de maio; Coro em Rememória de um Voo, até 2 de junho; e Ciguaterra, até 28 de julho.
[1] Gatt, Caroline. A Living Archaeology through Song: Exploring the past through breathing and voicing (rascunho). Tradução livre. Disponivel em: <https://www.academia.edu/35783524/DRAFT_A_Living_archaeology_through_Song_Exploring_the_past_through_breathing_and_voicing>.
[2] Segundo texto disponível em <https://gulbenkian.pt/cam/agenda/bandeiras-sao-predios-ke-a-gente-veste-aqui-de-tristany-mundu/>.