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Sobre a expansão do tempo: Nuno Sousa Vieira e Dayana Lucas na Appleton

Aprendi recentemente que, entre o povo Aymara dos Andes, o tempo não é uma linha que se estende para a frente. O passado surge à frente – visível, familiar, moldado pela memória. E o futuro vem de trás – escondido da vista, silencioso e incognoscível. Caminha-se para o amanhã guiado pelo que já foi visto.[1]

A última exposição na Appleton Square, Sem pisar o chão[2] de Nuno Sousa Vieira, e na Appleton Box, Perder o nome de Dayana Lucas, fizeram-me refletir sobre a inversão da nossa perspetiva do tempo. O que acontece se tornarmos o tempo algo aberto, quase infinito? Será possível expandir o tempo?

Nuno Sousa Vieira coloca o passado mesmo à nossa frente. 22240 tacos de chão do seu atelier – um por cada dia da sua vida – estão dispostos em camadas, espalhados pelo chão. Desviar-se do ‘bom caminho’ transforma o chão num mapa de memórias. Meticulosamente pintada e dividida em três ações, “arquivar”, “re(arquivar)” e “des(arquivar)”, a acumulação resiste à nostalgia. Em vez disso, apresenta a memória e a identidade como um diálogo contínuo, uma prática espacial. Estaremos sempre a recordar – ou estaremos, por necessidade, a reescrever?

Visão embaçada, uma série de pinturas em acrílico sobre vidro partido, as velhas janelas do estúdio do artista na antiga fábrica Simala, funcionam como ferramentas afetivas. Roxas para o Senegal, amarelas para Leiria, cor-de-rosa para Simala, são uma memória de antigos ateliers. As suas superfícies, fraturadas e irregulares, lembram a arte japonesa do kintsugi, onde as fissuras são enfatizadas em vez de escondidas, revelando o valor da imperfeição. O pó e os resíduos permanecem agarrados ao vidro, repositórios de luz e trabalho passados.

Integrada no ciclo Get Back, com curadoria de Carolina Trigueiros, a exposição marca um regresso, não apenas ao espaço onde o artista expôs pela primeira vez em 2012, mas também à sua própria prática. Parece um autorretrato por etapas – as obras dobram a memória na matéria, os arquivos no presente, caminha-se para a frente olhando para trás.

Enquanto Nuno Sousa Vieira materializa o tempo – documentado, indexado, deslocado -, Dayana Lucas transforma o tempo em algo fugidio.

Descendo as escadas, perde-se a perceção do tempo e do espaço ao entrar naquilo que mais parece um momento do que uma sala. Dayana Lucas cria um (não-)espaço; onírico, desarmante, quase terno. Um sonho do qual não se quer sair.

Um espaço luminoso, claro a partir do interior, que eliminou os pontos de fixação habituais: o topo das paredes, a linha do teto, o horizonte. As referências são retiradas, nós flutuamos.

O tempo começa a girar dentro das paredes circulares. As três personagens dançam: passado, presente, futuro. Futuro, presente, passado. Presente, passado, futuro? Desenhos subtis na parede onde as linhas resistem à fixação, uma linguagem oculta que quero aprender a falar. Materializam-se no centro: “Uma cabeça aberta e iluminada […], fragilmente apoiada no exterior”. Ponteiros de relógio fluidos, o tempo como um organismo delicado que parece respirar.

Dayana Lucas envolve-se num fluxo subtil de dualidade. A força apoiada pela fragilidade; a fragilidade ancorada pela força. Paredes permeáveis são sustentadas pelo peso. Uma fronteira permeável entre o sonho e a realidade, entre o interior e o exterior, entre nós os dois? O que parece mais estável pode, de facto, ser mais delicado.

Feitos de metros de papel reciclado, são suportados por areia pesada. A areia – frequentemente uma medida de tempo nas ampulhetas[3] – resiste ao movimento; em vez de fluir, prende, ancora. Atrás das letras, na parede do fundo, aparece uma espécie de traseiro, lembrando-nos que toda a gente tem um, mesmo que não se veja.

Talvez seja esta suspensão silenciosa – o silêncio entre o agarrar e o largar, entre a leveza e o peso – que permite perdermo-nos completamente. E, com isso, expandir o tempo.

Only in dreams I lose ground: illuminada perdição.[4]

Ambas as exposições estão patentes até 10 de maio de 2025.

 

 

[1] https://www.theguardian.com/science/2005/feb/24/4

[2] Dia 10 de maio, será apresentado um livro de artista com o mesmo título na Appleton.

[3] Em conversa com Juliette Thouin.

[4] Na Folha de Sala que acompanha a exposição Perder o nome, de Dayana Lucas.

Dela Christin Miessen é investigadora, escritora e editora. Faz parte do Aberta Studio em Lisboa e é co-fundadora da Echoes Residency dedicada a práticas artísticas socialmente empenhadas.

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