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Entrevista a Ali Kazma – Uma verdade com a qual eu possa viver

Tomás Camillis: O tema da tecnologia é central no discurso moderno, sendo frequentemente elevado num otimismo utilitarista ou descartado num idealismo romântico. É também um dos principais temas do seu trabalho, mas na sua abordagem não sinto qualquer moralismo – é mais um encantamento desinteressado. A decisão de utilizar a câmara como veículo artístico não só reflete o tema que escolheu, como também lhe permite manter esta qualidade de contemplação estética, ou neutralidade visual, mesmo quando filma fábricas de máquinas enormes com imenso poder.

Ali Kazma: A minha maior preocupação é conseguir dar ao sujeito que estou a filmar a distância certa através da imagem que crio, determinando assim o espaço que lhe damos para exprimir a sua essência interior em interação com o que o rodeia. Preciso de criar liberdade suficiente, mas também enquadramento contextual suficiente para que vejamos o que está a acontecer corretamente quando esse sujeito se expressa. Normalmente, mantenho uma câmara estática porque, quando se começa a movê-la, estamos imediatamente a envolver uma subjetividade que impõe o seu olhar pesado. Claro que estou a impor, mas também quero adotar a sua perspetiva.

TC: Esse é um aspeto do seu trabalho que me parece profundamente moderno: o entendimento de que estamos sempre sujeitos a uma certa circunstância em que as coisas importam, porque também nos moldam. Não se trata de um domínio sobre o tema.

AK: Trata-se de esperança. A minha posição modernista é uma posição de esperança, de que é possível moldar uma vida através das coisas, através do espaço, e talvez até para melhor.

TC: E, por isso, um dos pontos centrais do seu trabalho é a ideia de transformação, de como nos moldamos a nós próprios ao moldar o mundo à nossa volta. Este é, para mim, o tema central da modernidade. Olhando para o seu trabalho, lembrei-me do Fausto de Goethe, que, para se tornar um Über-mensch, precisa de ultrapassar a sua solidão e moldar o mundo à sua volta, para depois ser moldado por ele. Ele manifesta então esta paisagem de fábricas e portos, indústrias e cidades e jardins. Este é também o seu mundo, aquele que transmite através da ideia de transformação coletiva.

AK: Mas a transformação coletiva através da transformação individual. Nas minhas obras, é muito raro ver alguém ser tratado como parte de uma multidão, mesmo quando filmo em grandes fábricas. Não abordo uma pessoa como o estereótipo de um trabalhador, mas olho para cada um – mesmo quando fazem coisas semelhantes, fazem-nas sempre à sua maneira. Este progresso é, para mim, uma busca individual. Mas não sou ingénuo ao ponto de propor que todos possamos progredir através deste tipo de planeamento. Em muitos aspectos, o projeto da modernidade falhou. Mas não creio que o possamos descartar completamente. Temos de encontrar outra forma de trazer a ideia de transformação para melhor. Para mim, não há outro projeto humano.

TC: O desenvolvimento da modernidade atingiu um estado de hiper-individualismo que é incapaz de propor um novo projeto para o futuro, mesmo que o isolamento seja uma parte importante do processo de transformação do indivíduo. E mesmo quando filma pessoas isoladas, elas nunca estão verdadeiramente sós, mas sempre num determinado ambiente, em diálogo com as coisas.

AK: Estamos sempre num contexto ou noutro.

TC: Na modernidade, sempre houve uma tensão entre a arte e revolução industrial. John Ruskin chegou a evocar o artesão gótico para contradizer a crença no progresso tecnológico. Mas no seu trabalho não há diferença entre tecnologia e artesanato, porque nos mostra que mesmo as fábricas com grandes infraestruturas são, no fundo, também artesanais.

AK: Não direi que toda a produção industrial dá oportunidades ao trabalhador para, de alguma forma, realizar um potencial dentro de si – já vi condições de trabalho terríveis em muitos lugares. Mas estou interessado em situações em que isso seja possível, em que cada pessoa que toca num objeto possa aprender com ele, transformando-se através dele. Entre indivíduos distintos, vemos uma grande variedade de abordagens ao mesmo trabalho. Então, como poderíamos alargar esta possibilidade à maioria das pessoas que transformam as coisas? Por isso, tento compreender as complicações da vida na fábrica como uma micro-unidade da sociedade.

TC: A sua abordagem aos estúdios, os espaços dos artistas, também se insere no seu interesse pela escala individual de transformação. As bibliotecas privadas desta obra são um microcosmos. Olhando para Orhan Pamuk e Alberto Manguel, sente-se essa digestão solitária do mundo, quase como demiurgos em busca de uma organização dos seus universos. Ver Pamuk é contemplar alguém que pertence verdadeiramente a um ambiente auto-criado. Mas há uma simetria porque Manguel está, em contrapartida, a tentar descobrir um lugar adequado a essa eventual harmonia. Outra simetria é a tensão entre os seus microcosmos e a esfera coletiva – os navios que atravessam o Bósforo, na sua ordenação da nossa sociedade global, espelham a ordem que se realiza nas suas bibliotecas.

AK: Tenho observado as diferenças entre as pessoas, no seu pensamento, nos seus ritmos, na sua forma de criar valor ou de conceber o mundo, e a relação com a solidão é uma das características que definem todas as pessoas que conheço. Ser capaz de desfrutar da solidão e de construir algo a partir dela é uma necessidade para qualquer indivíduo transformar melhor o que quer que seja. Alberto e Orhan são construtores de mundos – como disse, estão a construir os seus próprios ambientes. Trabalhei e vivi com artistas e observei as suas vidas. Alguns deles pegam na matéria prima do mundo para o transformar. Outros sentam-se numa secretária e criam a partir de textos e livros, a partir da experiência escrita de outros, como Alberto e Orhan. Quando vemos Pamuk a trabalhar, de manhã à noite, está sozinho, mas sempre rodeado de textos de outros ou seus. Este é um mundo construído aparentemente sobre a solidão – mas está cheio de outros. Manguel é o mesmo. Por isso, esta solidão é, de facto, uma experiência incrivelmente enriquecedora para construir laços significativos com os outros. E depois saímos dessa solidão e envolvemo-nos com os outros, e isso espalha-se. A solidão de Manguel produziu estas numerosas obras, livros, ensaios, esta enorme biblioteca privada que se está a tornar pública em Lisboa, esta obsessão de um homem na sua solidão que é agora um recurso para a nossa sociedade. Considero isto extremamente valioso, o carácter privado da esfera pública.

TC: Neste trabalho, tive mesmo a sensação de que está a alterar a suposta hierarquia entre a realidade pública e a imaginação individual: estamos a assistir à transformação do mundo em representação. O modernismo viu a arte como o martelo do mundo, na tentativa de o moldar. Mas agora tornou-se ainda mais o fascínio de múltiplos reflexos, o exercício do simulacro tão caro a Borges, a sua infância passada na biblioteca do pai que se tornou a sua realidade mais verdadeira, e os seus espelhos e labirintos também presentes nesta obra. Está à procura de uma verdade mais profunda ou vê o seu trabalho mais como uma experimentação de símbolos e imaginação?

AK: Ambos, diria eu. É, sem dúvida, um exercício de símbolos, significados, linguagem , objetos e materiais, todas as possibilidades que temos neste lugar fantástico e que tendemos a ignorar. Mas lembro-me do céu que se vê quando se é criança, este fascínio passado pelo mundo. Dá-me uma enorme alegria brincar com tudo o que o mundo me deu. Mas, como todos os jogos, este é um jogo sério, com o objetivo de descobrir como viver neste mundo, por mim próprio. Como manifestar um certo ritmo, e com que valores e prioridades? Como posso equilibrar o privado e o público, o poético e o científico? Questiono-me e tento envolver-me no mundo não só através de símbolos, da literatura e das possibilidades do meu corpo, mas também através da minha arte – nelas não procuro a verdade última, mas uma verdade com a qual eu poderia viver.

TC: Para propor talvez novos conceitos de verdade que estejam fora das dualidades tradicionais do nosso pensamento – a verdade única e eterna que é oposta aos simulacros de jogos vazios.

AK: Penso que são as duas coisas. Só o amor pelo jogo, desprovido de qualquer motivo mais profundo, talvez degenere numa forma inferior, como vemos em muitos artistas em que a alegria do jogo se sobrepõe. Porque depois acabamos por perder até a alegria – uma situação difícil para qualquer pessoa criativa.

TC: Nesta obra também vemos os escritores envolvidos em atividades de descanso. Mas, para si, mesmo os momentos de quietude estão repletos de ação. A compreensão da forma como o trabalho altera o nosso sentido de tempo é um dos principais tópicos do seu trabalho. Historicamente, o trabalho da agricultura introduziu a ideia de suspensão: esperar que as colheitas cresçam. Após da Revolução Industrial, fomos moldados pelo ritmo incansável da fábrica, que impede o descanso. Como pensa que o seu trabalho lida com a natureza acelerada da nossa sociedade?

AK: Como criador de imagens, deve fazer-se uma dieta muito rigorosa delas, sem ter um apetite excessivo por ver e criar. Para mim, uma obra obra de arte é perfeitamente suficiente para uma semana. Devemos manter magra uma parte dos nossos cérebros, da sua capacidade de recriar significados. Alguns diriam que trabalho muito, mas o descanso também é necessário, embora não possa desligar a minha mente. Mas posso, por exemplo, ler um tipo de livros que descansam o meu cérebro de uma forma positiva, criando uma atividade que afasta a minha atividade principal. E depois dedico-me novamente a pensar e a criar imagens. Especialmente quando era mais novo, tive de aprender a afastar-me e a distanciar-me, porque é assim que a outra parte ganha sentido. Os filmes também precisam de descansar.

TC: A delimitação clássica da Europa mediterrânica, do Helesponto aos Pilares de Hércules, apenas preserva a Turquia ocidental e dispõe de todo o Portugal. No entanto, nesta obra sugeres uma simetria entre Lisboa e Istambul, talvez substituindo a falácia purista do jardim europeu pelo continente como centro cultural poroso. E, ainda assim, optaste por delinear este território através das práticas de dois escritores introspectivos.

AK: Uma celebração da atenção.

TC: É quase como se estivessem a reinventar, através das articulações internas dos símbolos das suas bibliotecas, todo o continente. Quando os navios se aproximam pelo Bósforo e as gaivotas atlânticas aterram, trazem a Pamuk e a Manguel as ferramentas necessárias para sonharem a Europa. Talvez a nacionalidade seja apenas uma ficção.

AK: Poderíamos também contemplar muitos outros portos, mas eu opto por ver estes países como as portas orientais e ocidentais da Europa. Quero olhar para a história de uma perspectiva vigorosa, sugerindo algo diferente desta loucura hiper-capitalista que estamos a viver, limitando-nos ao medo do imigrante, a esta repressão através de agendas de direita que dizem que a Europa está perdida, que tudo é bárbaro e que a civilização acabou. Quero que não se fechem as portas, mas que se mantenham abertas, para que este argentino possa vir a Lisboa, trazendo para cá a sua solidão. Quero lembrar aos que estão desmoralizados e desiludidos que temos o direito de pedir essa solidão, e investir nessa outra ideia de cultura que permita a possibilidade da curiosidade, do respeito e do cultivo da atenção, que possamos descobrir e desenvolver coisas que possamos partilhar. Temos de lutar por esta Europa melhor, mas não com armas: escrevendo, lendo, recordando, preservando, mesmo que pareça que estamos a perder neste momento, pois uma luta nunca é sobre aquele momento específico, mas sobre criar a preservar a memória. Foi por isso que quis mostrar estes retratos de dois extremos da Europa, visto que ainda hoje estas pessoas continuam a viver assim. Portanto, é possível continuar, criando significado no nosso tempo.

TC: Lutar por uma ideia alargada de ócio.

AK: Robert Walser, talvez, escreveu sobre a forma como Cezanne passava o seu tempo em contemplação, complicando as coisas que pareciam simples e simplificando as que pareciam complicadas. Uma boa vida, para ele, e a sua definição de alegria – a felicidade de um escritor.

TC: Um processo infinito. E, por isso, gostaria de abordar ainda o seu conceito de ritmo. Se a composição artística pressupõe a nossa capacidade de compreender a totalidade da realidade, o ritmo é mais humilde e misterioso, mais contemplativo e menos intelectual. Na sua obra, especialmente através da relação entre diferentes planos temporais, atingimos um sentido de transcendência. Vemos trabalhadores que, no seu labor, se superam para habitar a harmonia de todas as coisas, grandes e pequenas – o ritmo da escrita de Pamuk, por exemplo, reflete os movimentos dos barcos do Bósforo. Acredita na harmonia universal?

AK: A harmonia universal poderia existir, suponho, num mundo ideal, mas nunca a vi na história, nem sequer a possibilidade de existir numa sociedade futura. Só se sonha para os outros quando se pressupõe que poderia existir uma certa harmonia mundial, impedindo uma postura inquisitiva e impondo-se ao outro. Mas a minha maneira de impor uma espécie de harmonia ao mundo é um gesto muito humilde: uma procura de harmonia dentro da minha própria vida, sem nunca ousar empurra-la para uma plataforma maior. É preciso muito para criar apenas um indivíduo que consiga manter uma espécie de boa harmonia rítmica com o que o rodeia. É tão difícil criar o contexto adequado para que isso aconteça. Em O Sobrinho de Wittgenstein, Thomas Bernhard diz que a família Wittgenstein precisou de duas gerações de trabalho horrível, construindo arsenais, aço e poluição, para produzir este Wittgenstein – não Ludwig, mas o pianista – que era o fruto de todas as coisas. É um exagero, mas é um ponto que me parece interessante. Por isso, quando encontramos um Orhan Pamuk ou um Alberto Manguel, alguém que está a tentar criar esta harmonia pessoal contra todas as possibilidades, é como descobrir uma pirâmide invertida no deserto. A maior parte das pessoas afastou-se disso. Optei por trabalhar com estes indivíduos para nos recordar a possibilidade de uma tal busca.

TC: Uma bela imagem, a pirâmide invertida, pela sua força e delicadeza. A natureza levou biliões de anos para produzir a consciência humana, uma coisa tão sofisticada quanto frágil, tão facilmente quebrada por ritmos superficiais. Gostaria, portanto, de terminar a nossa conversa com a morte. O senso de sublimidade presente nas suas obras dá-me a sensação de que o nosso maior objetivo é a criação de coisas cuja duração nos ultrapasse. Tanto Manguel como Pamuk, por exemplo, procuram esses monumentos capazes de preservar a ordem e a eternidade. A tensão entre a precariedade da vida e a ideia de eternidade é importante para si?

AK: Neal Stephenson, um escritor de ficção científica barroca, fala de um capitão que passou por muitos perigos, navegando em mares tempestuosos. Mas na cabine do seu navio guarda um espelho, tem copos frágeis para beber o seu xerez e talheres que lhe permitem comer de forma cavalheiresca. E fica furioso quando descobre pó na mesa. De certa forma, estamos sempre a tentar criar ordem num mundo destinado a morrer. Conhecendo o meu próprio fim, tento descobrir uma boa maneira de passar o tempo que tenho. O meu trabalho tenta compreender as atividades que pretendem prolongar, parar ou atrasar esta decomposição, que tentam manter essa beleza, essa ordem, desenvolvendo o ritmo e o contexto que me dão uma oportunidade de criar significado no mundo. E sinto-me atraído por pessoas que fazem o mesmo.

 

A entrevista a Ali Kazma foi realizada a propósito da sua exposição Lisbon-Istanbul. Two Portraits on the Edge, patente na Galeria Francisco Fino até dia 3 de maio.

Tomas Camillis é autor e pesquisador baseado em Lisboa. Escreve narrativas fictícias e ensaios no contacto entre arte, filosofia e literatura. Possui mestrado em Teoria da Arte pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Nos últimos anos participou de pesquisas, lecionou cursos em institutos culturais, auxiliou na organização de simpósios e publicou em revistas especializadas. Atualmente colabora com o Serviço Educativo do MAC/CCB e com a revista Umbigo.

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