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Técnica mista sobre papel #9: A mudez da abelha e de Morandi

Mais do que silêncio, por estes lados houve mudez. Desde os primeiros dias de Janeiro a catadupa de informações e desinformações, e volta e retoma, tem sido tão acelerada que demorei estes meses todos a voltar a escrever. Faltou tempo, essa falácia da modernidade, de que se arranja sempre um furo, um pequeno momento, só um café rápido, não altera nada, anda lá, vá. Por vezes não dá mesmo. Quem quer fazer alguma coisa, tem de fazer com todas as medidas! Era bom que ainda desse para este tipo de asserções na contemporaneidade que temos.

Então passados quatro meses de silêncio, o que me motivou a escrever? Pois bem, entre tarefas e tarefinhas, dei por mim a seguir com o meu olhar, uma abelha. Que glória! Quem tem medo de abelhas, e começa logo a agitar-se, está duplamente equivocado. Primeiro, porque a maioria das vezes as pessoas tomam por abelhas, vespas. É dos maiores erros que se pode cometer. Quem sabe a diferença, sabe. Uma abelha não tem mesmo nada que ver com uma vespa. A vespa anda em aditivos, é esguia, silhueta magra e longilínea, tonalidade amarela, e, a parte que interessa — carnívora. Ora basta ter um pedaço de proteína qualquer enfiado no meio de duas fatias de pão na praia, e já não se consegue ter mais paz. A vespa é rápida, é persistente, e acontece que dá uma ferroada sem qualquer peso na consciência se alguém se colocar no seu objectivo. Portanto, em segundo lugar: é dar-lhe a fatia de presunto e ela deixa-nos em paz. As vespas são um parente maléfico das abelhas. A diferença vê-se logo no voo. Enquanto a vespa anda em ziguezague, linhas rectas e velocidades estonteantes, a abelha faz um trajecto lento, prospectivo, na maior das calmas, e como se estivesse a auto-embalar-se ao mesmo tempo. As abelhas têm mais pêlo, são mais redondas, e são mais escuras. São queridas — e são vegetarianas. Mas também são lixadas. Se decidimos chateá-las e abaná-las e afastá-las, são capazes de fazer um kamikaze e sacrificarem a vida delas dando-nos uma boa ferroada. A abelha só o faz em último reduto. Elas não querem mesmo saber de nós para nada. São, parafraseando um pasteleiro apicultor, uma das sociedades mais evoluídas que podemos ter a honra de conhecer. Parece um vaticínio inabalável. Mas é mesmo. Vale a pena ler mais sobre o assunto. Ou, numa atitude simpática com o ambiente, porque não ter umas colmeias e aprender empiricamente?

Estava eu a olhar para a abelha e a pensar 1) onde eu estava era sinal de algum ar puro, porque as abelhas não andam nas suas rotas sem procurar o que é bom; 2) que a abelha procurou um novo percurso dentro de minha casa, embora eu desconfiasse, como se veio a confirmar, que não encontrou o que precisava; 3) que a abelha tem um modo de vida lindíssimo, porque se dá ao luxo de tomar o seu tempo para procurar o que precisa, com todo o seu voar bamboleante e pachorrento. Foi neste último aspecto que acabei por me alongar. Dei por mim a contemplar a abelha, a pensar no seu ritmo de vida, e a decidir parar as minhas tarefas e tarefinhas e ficando só a observá-la até haver um desfecho. Desfecho esse que seria ditado pela abelha, e não por mim. Eventualmente, assim como entrou, saiu. Nem tentou aproximar-se de mim.

O luxo da contemplação, cada vez mais premente na actualidade, vem a par do luxo do silêncio. E quem aprecia e zela pelo silêncio, necessariamente contribui com a mudez. A ausência de som auto-proclamado, ou a presença forte que algo mudo pode ter, é onde eu gostaria de chegar. Há uns dias lembrei-me de Morandi. E hoje com a abelha, voltei a lembrar-me de Morandi. Há uns dias lembrei-me de Morandi porque algumas, mas raras vezes, encontro objectos displicentemente colocados que me lembram as suas composições pictóricas. Foi o caso há uns dias. Vi um conjunto de garrafas, não posso dizer que eram banais porque muitas eram de vidro de Murano e singelamente decoradas, mas estavam expostas numa prateleira como se esperassem a sua vez. A sua vez para serem eternizadas numa composição de Morandi. Em silêncio, observavam tudo o que se passava diante delas. As conversas e as danças, os pormenores e micro-expressões. A mudez dos objectos por vezes diz mais do que as acções humanas. Parecia o caso destas garrafas com ares de pintura de Morandi.

Giorgio Morandi tem uma história peculiar. Diz-se que raramente saía de casa, e que tanto ele como as suas irmãs, viveram com a mãe até esta deixar de existir. Morandi pintava naturezas-mortas, e ter visto as pinturas de Cézanne teve um forte impacto na sua produção. Era inabalável, no sentido em que ao contrário dos tempos revoltosos em que viveu, mantinha-se firmemente dedicado às suas naturezas-mortas. Os objectos não variavam assim tanto, nem a paleta cromática, leve, em tons pastel, nivelada, sem grandes contrastes. Por vezes surge uma sombra para nos dar a indicação da incidência da luz. Mas até a luz é tranquila, rasante e uniforme. São pinturas que apaziguam. Parecem eternizar um momento que pode prolongar-se por segundos, minutos, horas ou meses. Os objectos representados, habitualmente garrafas, jarras, vasos de cerâmica, são atemporais. Podem fixar um momento específico dos anos 1940-50 — quando a produção do pintor foi mais constante — como podem ser as garrafas que eu vi há umas semanas. A pintura de Giorgio Morandi tem esse poder: é muda no tempo. A passagem das horas de luz estanca, a contemplação revela-se. Só sabemos mais sobre Morandi porque este foi o seu desígnio durante décadas. Um trabalho laborioso, repetitivo, mas nunca igual. As composições mudavam, como quem decide fazer uma nova combinação com as mesmas variáveis. Discerne-se a mesma garrafa de vidro, numa pintura em primeiro plano, noutra em pano de fundo. Mas compreende-se porque estes objectos banais tenham sido o seu tema de eleição. Há algo mais belo do que renovar o nosso fascínio sobre o que nos rodeia diariamente? E como a disposição lumínica de cada dia pode revelar uma nova condição cromática? Morandi ensina-nos a contemplar. Nas coisas mais triviais, nos objectos já rachados, mas que povoam o nosso dia-a-dia, no afecto da sua convivência diária. Não é preciso muito para nos deixarmos levar no ritmo bamboleante de uma abelha. Morandi mostra-nos isso. Decidiu deixar-nos a tranquilidade do silêncio, nos objectos que nos observam todos os dias. E com isso, impôr a sua visão da mudez. Tal como a abelha, Morandi foi seguindo o seu trajecto lento, prospectivo, auto-embalativo. Não avançou para o imediato, tomou o seu tempo, assertivamente revelando a beleza do trivial no quotidiano. Temos a aprender com abelhas e com Morandi. Só espero não demorar mais quatro meses.

Luísa Salvador (Lisboa, 1988) é artista visual e investigadora. É doutora em História da Arte Contemporânea na NOVA FCSH, tendo sido bolseira da FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia (2015-2019). Tem Mestrado em História da Arte Contemporânea da NOVA FCSH (2012) e Licenciatura em Escultura da FBAUL (2009). Paralelamente a esta atividade, desenvolve a sua prática artística. Expõe regularmente desde 2012. Foi vencedora do Prémio Jovens Criadores 2018 na categoria de Artes Plásticas. A par da sua prática artística desenvolve também uma atividade escrita, entre textos teóricos e crónicas. Fundou em 2018 a publicação trimestral “Almanaque — Reportório de Arte e Esoterismo”, da qual é editora. Vive e trabalha em Lisboa.

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