Canções para um burro morto, de Mauro Cerqueira
“Problema de uma literatura menor, mas também de nós todos: como é que se extrai da própria língua uma literatura menor, capaz de pensar a linguagem e fazê-la tecer conforme uma linha revolucionária sóbria? Como devir o nómada, o imigrante e o cigano da própria língua?”[1]
A exposição Canções para um burro morto, primeira exposição monográfica do artista Mauro Cerqueira e patente no CIAJG, revela um interesse da instituição pelo estabelecimento de percursos e expressões periféricas. Passível de estabelecer um diálogo com a exposição Chão[2], patente ao mesmo tempo no piso -1, se essa remete para o levantamento dos estratos hierárquicos da perceção, esta, apresentando-nos o trabalho de Mauro Cerqueira, com curadoria de João Terras, parece procurar os locais que estão fora, nas margens, das sedimentações estabelecidas. Se a própria cidade constitui um espaço social de constantes estratificações semióticas, o trabalho de Mauro Cerqueira parece revelar um interesse pelos processos nomádicos que, nas palavras de Deleuze e Guattari, escapam precisamente a esses agenciamentos organizacionais: “Com o nómada, pelo contrário, é a deterritorialização que constitui a relação com a terra, até tal grau que o nómada reterritorializa a própria deterritorialização. (…) Eles são vetores de deterritorialização.”[3] É esta figura do nómada que protagoniza este movimento de constante fuga, de anonimato e de escape ao sedentarismo que estratifica e constrói.
Demonstrando um interesse pelos movimentos paralelos e marginais, pelas histórias míticas e especulativas, Mauro Cerqueira recorre a uma série de materiais e formatos que, estabelecendo uma relação com o espaço urbano, o apresentam enquanto aglomerado, que, por estratificar, forma necessariamente espaços que se tornam, assim, periféricos e alternativos. A primeira sala da exposição, composta por enormes quadros pintados e acoplados através de materiais quotidianos, assemelhando-se ao ato de verticalizar que caracteriza igualmente a exposição Chão, não apenas desdobra esse movimento, mas apoia-se nele para a construção de uma nova pintura, nos moldes de uma que resiste às normalizações que lhe imperam: “A necessidade de não ter controlo sobre a linguagem, de ser um estrangeiro na sua própria língua, de forma a atrair o discurso para si próprio e ‘trazer algo incompreensível para o mundo’.”[4] Num gesto referencial à arte povera, Mauro Cerqueira parece materializar preocupações semelhantes, atacando os valores estabelecidos das instituições através de materiais não-convencionais e pobres. No entanto, a restruturação parece não apenas assentar nos materiais que constituem as formas, mas igualmente na figuração que estes constroem, de uma vida e de uma arte que se ergue enquanto necessariamente periférica, e do olhar a ela associado. Esta referência torna-se igualmente visível nos espelhos que, ocupando uma sala, se tornam material basal para a criação de peças. O trabalho sobre espelhos reflete necessariamente, pela sua inclusão no objeto visível, o ambiente no qual está inserido, mas, ao serem dispostos numa sala escura e iluminados individualmente, o efeito oposto ganha destaque, onde a manipulação neles efetuada é refletida para a sala que os envolve. Ao aproximar a sala de uma sala escura cinematográfica, acompanhando os trabalhos de vídeo que constituem a exposição, encontramos nestes objetos a forma como devolvem um recorte ao espaço através da luz com que trabalham. Deformando e reconstruindo o espaço onde se encontram, este vê-se continuamente confrontado pelas periferias que por ele são criados e se assertam enquanto requisitando um olhar. Esta constante reformatação do espaço é igualmente visível nos outros objetos que compõem a exposição, através de rodas, cimento ou outros materiais retirados do contexto urbano quotidiano.
Auxiliando, portanto, aos materiais um interesse pela figuração ao qual eles remetem, o trabalho em vídeo que acompanha a exposição parece um natural desdobramento, uma forma de documentar a vivência e expressão de comunidades e grupos que passam por exemplo pela música e pelo skate. A própria encarnação de culturas e vivências que se constituem necessariamente de forma marginal, ou a utilização do vídeo para denunciar as políticas urbanas, por exemplo, permitem que os desdobramentos políticos do trabalho do artista e a sua expressão plástica dialoguem nesse espaço de constante rutura. Relembramos o conceito de “arte menor”, como utilizado por Deleuze e Guattari, para quem “a máquina literária reveza uma máquina revolucionária por vir, não por razões ideológicas mas porque esta está determinada a preencher as condições de uma enunciação coletiva que falta algures nesse meio: a literatura é assunto do povo.”[5] A figura do burro morto, que dá título à exposição e figura em um dos vídeos presentes, parece acrescentar ao burro, já associado à sua passividade e pura contemplação, uma inexistência de agenciamento que reitera o anonimato distribuído por toda a exposição enquanto elemento central da comunidade que escapa ao individualismo extremo do capitalismo. Nesse sentido, apresentam-se como canções os elementos que aqui encontramos, narrados e distribuídos enquanto sintomas de uma comunidade que encontra no seu coletivo a fabricação de artes necessariamente menores.
Canções para um burro morto está patente no CIAJG até dia 27 de abril.
[1] Deleuze, G. & Guattari, F. (2003). Kafka: Para uma Literatura Menor, p. 43
[2] Ver a exposição Chão e o texto Chão, no Centro Internacional das Artes José de Guimarães, escrito por Mariana Machado.
[3] Deleuze, G. & Guattari, F. (2023). A Thousand Plateaus, p. 444-445. Tradução livre
[4] Deleuze, G. & Guattari, F. (2023). A Thousand Plateaus, p. 440. Tradução livre
[5] Deleuze, G. & Guattari, F. (2003). Kafka: Para uma Literatura Menor, p. 40