A residência de Julia Pereira na LUZ_AIR Lisboa
Padrões de azulejos; imagens religiosas e altares de igrejas portuguesas; recortes de obras do Museu Nacional de Arte Antiga; fotografias de janelões neoclássicos de ruas e prédios lisboetas; as ruínas do Carmo; a escadaria quinhentista da Brotéria; o cartão postal de uma pintura de Ticiano; (…) são vários os fragmentos de imagens, cores, padrões e texturas que preenchem as paredes do atelier de Júlia Pereira em Lisboa. Recortes portugueses captados pela artista, imagens que fotografa e coleciona, que a alimentam e inspiram num cruzamento constante entre temporalidades diferentes, memórias, imagens e formas que sobrevivem para além do espaço e do tempo. Não obstante o caráter ambíguo das fotografias que Júlia regista e expõe ao longo das paredes do atelier, nelas identificamos e reconhecemos o aspeto dual, as tonalidades e sugestões formais que permeiam a sua obra pictórica, na qual a questão do corpo, da carne e a impermanência temporal são força motriz.
As pesquisas artísticas de Júlia em relação a aspetos gráficos, expressionistas, de cor e de forma, assim como o cariz internacional do seu corpo de trabalho, despertaram a atenção do curador e consultor de arte americano Simon Watson e de Xavier Auza, durante uma visita ao seu atelier de São Paulo em Agosto de 2024. Com o objetivo de viabilizar a sua primeira residência artística internacional na LUZ_AIR Lisboa, a artista foi desafiada a pintar dez telas, que tomaram forma em Horizonte Desejante, obras que no limiar entre a abstração e a figuração, evocam paisagens lânguidas e exploram a intangibilidade do tempo e o seu impacto nos corpos pulsantes e nas conexões emocionais[1].
Somos recebidos por Júlia Pereira na fase final da sua residência de dois meses em Lisboa (fevereiro e março de 2025), conversamos sobre os seus interesses, o seu percurso e o impacto da cidade portuguesa no seu processo criativo e nas novas obras que produziu durante a sua estadia, sobre o modo como avalia a experiência vivida em Portugal e o impacto futuro que a mesma poderá ter na sua trajetória e criação artística, numa etapa que a própria define como uma chance de começar um novo capítulo da minha carreira, agora internacional. Uma oportunidade.
Entre telas da artista em exibição nas paredes de diferentes divisões da residência, observamos no atelier as fotografias que lhe servem de inspiração, os diversos estudos em papel que pontuam as paredes, assim como pinturas mais recentes e outras que, por terminar, se estendem pelo chão juntamente com os pincéis, as tintas e os pastéis a óleo. Neste ambiente de estudo, pesquisa e trabalho, deixamo-nos seduzir pelas cores, pelos traços enérgicos das pinceladas, pela manualidade e gestualidade dos traços que na tela evocam a presença constante do corpo da artista. Pintando a partir do chão, há uma relação corporal de movimento, de intimidade com a tela, num trabalho de união entre dois corpos que se encontram – o seu e o da pintura – sem controle e perspetiva, numa lógica de acaso que a artista procura através dos materiais e dos seus gestos, no que define como um embate entre a sua vontade e a vontade da tinta. A este respeito, a artista menciona a conexão entre cabeça e mão, coração e mão equiparando o seu traço a um registo sismográfico:
(…) entendi que quanto mais ficasse consciente de como o meu corpo reagia às pinturas ou às memórias que eu lembrava e que tentava pintar depois, muitas vezes eu sentia uma certa vibração que saía no pincel de maneira muito sutil, mas muito conectada ao que estava se passando por dentro. A ideia que eu estava vendo, era o que eu estava tentando registrar com a mão, mesmo que de maneira incompreensível no primeiro instante. O aspecto do corpo, a ligação está aí, na mão, a última ponte entre a psique e o mundo de fora.
Processo de ressonância corporal que observamos em quatro obras realizadas entre dezembro 2024 e janeiro 2025 em São Paulo, que como notas introdutórias e estabelecendo uma ponte com o corpo de trabalho produzido em Lisboa, contextualizam o processo artístico e criativo de Júlia Pereira. Nelas reconhecemos o envolvimento físico e psíquico do ato de pintar, a tensão constante entre a intenção de registar memórias e experiências afetivas por meio dos gestos e movimentos do corpo. A velocidade das pinceladas, expressivas e expansivas, acumulam-se na superfície das telas em imagens cuja natureza visceral e tumultuosa, num caminho constante para a abstração, evocam sensações de impermanência e dinamismo. Destaque para a paleta cromática na qual sobressaem diversas gradações de verdes, rosas, vermelhos e castanhos, tons terrosos e carnais que mais uma vez remetem para a presença do corpo. A predominância e a intensidade de um tom de vinho que, assemelhando-se a sangue, evoca simultaneamente vida e morte em obras como Wild promises (2024) e Matéria, memória (2024). Esse tom vinho que atrai a artista e cuja vontade de o consumir, equipara a um trecho de Amor Líquido de Zygmunt Bauman sobre amor e desejo, num jogo de dualidades que lhe interessa e perpassa o seu corpo de trabalho.
Investigando novas potencialidades e caminhos pictóricos, as obras produzidas durante a residência de Lisboa revelam sugestões formais e cromáticas que as diferenciam de trabalhos anteriores. Refletindo o primeiro impacto visual, sensorial e emotivo da artista com a cidade portuguesa, a obra intitulada Primeira Luz (2025) revela na escolha das cores, no brilho e intensidade da luz, influências de Lisboa. Transpondo para a tela o que já estava começando a vibrar dentro de si, num processo de ressonância corporal que regista o contacto inicial com a cidade, observamos as cores que irrompem de forma visceral pelo quadro: gradações de rosas, verdes e a presença subtil de um azul aquoso, quase branco, que intensifica o brilho e luminosidade da paisagem retratada. Cores resgatadas a lugares emotivos e simbólicos, impressões poéticas de memórias e ambientes que a rodeiam, mas também a experiências concretas como a transparência azul do céu lisboeta. Num cruzamento entre abstração e figuração, que artista já vinha explorando em São Paulo, apercebemo-nos de uma leveza, suavidade e fluidez da pintura, que parece caminhar por conta própria, em composições como Miradouro (2025), onde a relação entre o que é figura e fundo, o que são formas ou gestos formais são explorados pela artista.
O caráter dual do seu corpo de trabalho, num confronto e diálogo entre delicadeza/agressividade; forma/disforme; cheio/vazo; vida/morte, adquire uma nova dimensão em Anunciação, primeiro díptico realizado pela artista. Refletindo e explorando a ideia de dupla, pesquisa que pretende desenvolver no futuro, inspirada no Cais das Colunas e pela ideia de par que anuncia um equilíbrio, Anunciação (2025) reflete questões de simetria, ordem e religiosidade. Influenciada pela arte azulejar da cidade, pela sua expressão decorativa e função arquitetónica em edifícios civis e religiosos, pela riqueza da pintura cerâmica e pela remontagem geométrica dos espaços através de variações dos módulos decorativos, o díptico Anunciação desperta a atenção pela acumulação de formas e adensamentos pictóricos que, na união entre as duas telas parecem evocar um altar ou figura religiosa. A sobrevivência de imagens e formas, enquanto realidades vivas que viajam no tempo, é também mencionada pela artista ao referir semelhanças formais entre Anunciação e a cascata de pedra do Museu de Água das Amoreiras, que visitou posteriormente à realização do díptico, reafirmando a mistura de memória e realidade como algo que a atrai.
Contrapondo-se a nível formal com as obras anteriores, What Has Been Still Is (2025) destaca-se pela presença que o gesto pode ser capaz de manter ou sugerir, pela leveza, sugestão de vazio e uso de tons beges e pastéis. Destaque para duas pinturas de grandes dimensões A Chegada e Percebo-te (2025), trabalhos que começaram no chão, e nos quais identificamos uma fluidez nos traços que, mais libertos e sem controle – no que Júlia admite ser uma consequência de Lisboa – emergem em paisagens nas quais sobressaem o brilho e luminosidade dos tons verdes e azuis.
À apresentação do novo corpo de trabalho produzido em Portugal, que a artista deu a conhecer no Open Studio na LUZ AIR Lisboa a 1 de março 2025, seguem-se novos projetos e exposições no Brasil. As pinturas Percebo-te e Fatalista integrarão em abril a exposição coletiva No tempo das subtilezas (galerias ArteFASAM e MAMUTE, SP) com curadoria de Giulia França; a obra A Chegada estará exposta na SP-Arte (Pavilhão da Bienal); e a 5 de abril terá lugar na LUZ_AIR São Paulo um private viewing de obras recentes da artista. Em Agosto, no Museu da Casa Brasileira Júlia irá participar de uma outra coletiva, com uma pintura mural de grande escala, numa primeira experiência da artista fora da tela. Oportunidades para conhecer o trabalho de Júlia Pereira para quem o desejo pela cor, a impermanência do tempo, as memórias e o fascínio pelo corpo são força motriz de uma prática artística, cuja passagem por Lisboa semeou novas sugestões formais e estilísticas e que lhe trará novos desafios.
[1] WATSON, Simon – Horizonte Desejante, 2024.