Memória Colateral: Uriel Orlow na Galeria Avenida da Índia
Na Galeria Avenida da índia, a exposição Memória Colateral de Uriel Orlow desdobra-se como um mapeamento sensorial dos vestígios da violência história e dos modos como a memória se inscreve — ou se apaga — nas teias do mundo ocidental. Através de vídeo, fotografia, desenho e instalação, Orlow constrói uma arqueologia de ausências, onde a restituição se transforma numa ética de responsabilidade e respeito, uma prática contínua de escuta e reintegração daquilo que o mundo ocidental tem silenciado.
O título da exposição evoca a ideia de “dano colateral”, um termo tantas vezes usado para justificar a destruição de corpos, culturas e saberes em nome de um centro que define o que merece ser lembrado. No trabalho de Orlow, essa margem torna-se o próprio campo de investigação: as suas obras não procuram monumentalizar o que foi esquecido, mas sim devolver agência às pessoas que lhe fazem parte, evidenciando os sistemas que as condenaram ao esquecimento e convocar novas possibilidades de relação com o passado.
Entre os vários núcleos da exposição, Reading Wood (Backwards) destaca-se como uma interrogação meticulosa sobre os vestígios do colonialismo inscritos nas práticas científicas e nos sistemas de conhecimento ocidentais. Partindo da Xiloteca do antigo jardim colonial de Lisboa — um arquivo botânico de madeiras recolhidas nos territórios ocupados pelos portugueses — Orlow devolve o olhar à matéria, reconectando as amostras arquivadas às árvores de onde foram extraídas. Deste modo, a obra questiona não apenas o gesto da catalogação colonial, mas também a própria ideia de restituição: como devolver ao mundo aquilo que foi transformado em dado, em índice, em objeto de estudo? E que significados emergem quando olhamos para o arquivo não como um depósito neutro de informação, mas como um campo de violência?
A questão da restituição — e da sua ausência — atravessa outras obras da exposição. The Benin Project (2007) refere-se diretamente ao roubo dos Bronzes de Benim (roubados pelos britânicos em 1897), desmontando as narrativas museológicas que continuam a perpetuar a lógica colonial sob o véu da conservação. A obra A Very Fine Cast (119 Years), que faz parte deste projeto, devolve a palavra ao arquivo, traçando a evolução das descrições dos Bronzes de Benim nas instituições da Europa e Estados Unidos. Já em Lost Wax, vemos vídeos que mostram as várias etapas de trabalho de artistas de Benin City (Nigéria) que utilizam a técnica “cire perdue” para criar esculturas únicas.
A noção de que a violência não se extingue num único momento, que reverbera, ramifica e infiltra-se nas estruturas do presente, ressoa em peças como 1942 (Poznan), onde Orlow revisita uma antiga sinagoga na Polónia que foi transformadas numa piscina durante o regime nazi. O artista filma o interior do edifício, captando um espaço cheio de ausências, onde a arquitetura se torna num corpo carregado de memória. O mesmo acontece em The Memory of Trees, uma série de fotografias de árvores que se apresentam como testemunhas silenciosas que inscrevem a violência histórica no seu próprio crescimento. Entre elas vemos um choupo que guiava fugitivos do apartheid na África do Sul, ou uma árvore que ficou conhecida como “Old Slave Tree of Woodstock”, onde esclavagistas vendiam humanos e os torturavam.
Memória Colateral não se limita a cartografar a destruição, há também gestos de recuperação que tentam reverter os processos de apagamento. Em What Plants Were Called Before They Had a Name, o artista confronta a erradicação de saberes indígenas na Guatemala. A instalação é composta por retroprojetores e um vídeo onde vemos guias espirituais maias a reescrever o nome de plantas medicinais na sua língua original, numa publicação onde elas estavam nomeadas em castelhano. Já Mangoes of Goan Origin (Na Archive) resgata as variedades de manga em Goa, recuperando a diversidade esquecida desta fruta e evidenciando a complexa rede de trocas, apropriações e ressignificações que marcaram a história desta região durante o período colonial português. Ambos os trabalhos, propõem um movimento de reinscrição e de devolução da voz.
O que Memória Colateral nos propõe é um outro modo de escuta, uma maneira de estar em relação ao passado que não se limita à nostalgia ou à denúncia, mas que assume a memória como um campo de trabalho, um espaço de intervenção contínua. Ao recusar a passividade do olhar museológico e ao insistir na necessidade de um envolvimento critico, Uriel Orlow convida-nos a refletir sobre a nossa própria posição: que responsabilidades carregamos em relação ao que foi apagado? Que papel desempenhamos na perpetuação ou na subversão dessas ausências? E que futuro se pode construir a partir dessa consciência? Memória Colateral abre espaço para estas perguntas, incitando a levá-las connosco, a permitir que se infiltrem na nossa forma de ver, de habitar e de agir sobre o tempo.
A exposição está patente na Galeria Avenida da Índia até 27 de abril.