Top

Oh, Si Os Pudiera Escuchar, de Pol Taburet: desvendar uma tensão arcana

Sempre me fascinou a carta de Tarot número 13, a Morte, não porque tenha uma particular afinidade com esta prática – na verdade, nunca entendi bem o Tarot, e mal o compreendo quando alguém me lê as cartas. Contudo, apesar do seu nome e imaginário (a carta no Tarot de Marselha apenas exibia o número, evitando a designação Morte), o seu significado é fluido. Um portal, uma metamorfose, algo em transformação. Uma renovação, uma viagem, uma tensão.

Lembrei-me do Tarot – e desta carta em particular – pois foi precisamente essa tensão que senti perante as dez telas e desenhos de Pol Taburet em Madrid, no Pabellón de los Hexágonos. A exposição Oh, Si Os Pudiera Escuchar, com curadoria de Hans Ulrich Obrist e organizada pela Fundación Sandretto Re Rebaudengo Madrid (a homóloga madrilena da fundação sediada em Turim), coloca-nos perante algo fugidio, um enigma cuja solução não é total, mas que permanece coeso através de uma tensão estética sombria, quase perturbadora – uma tensão muito mais intensa, profunda e, ainda assim, paradoxalmente mais calma do que nas obras mais antigas de Taburet. Estes trabalhos parecem vozes distintas num teatro absurdo, cada uma das quais tenta falar, ser ouvida, mas todas silenciadas pelo peso da sua própria tensão. A exposição também inclui uma peça sonora com a qual o silêncio parece ser quebrado, contrariando a cacofonia silenciosa e irresoluta das pinturas.

Interessante é o facto de, na entrevista com Hans Ulrich Obrist incluída no catálogo da exposição, o artista ter revelado que uma das suas fontes de inspiração foi o Tarot – mais precisamente o baralho surrealista de Breton. À semelhança das suas pinturas, as cartas eram sincréticas, mais ligadas ao inconsciente e à associação de palavras do que a uma verdadeira função divinatória. Inspiraram-se profundamente na psicanálise de Freud e Jungian, misturando símbolos antigos com o conceito de inconsciente, e fundindo esoterismo, teoria psicanalítica e imaginação artística. Muito mais do que um instrumento de adivinhação, transformaram-se numa experiência destinada à exploração do subconsciente e da própria criatividade (curiosamente, na mesma altura em foi inaugurada a exposição de Taburet, o Circulo de Bellas Artes de Madrid acolhia uma mostra sobre Max Ernst, com o baralho de Tarot Surrealista).

E, à semelhança do que acontece no subconsciente, as figuras de Taburet revelam-se como fantasmas – fluidas, inconstantes, tensas mas, simultaneamente, calmas. O artista foi buscar inspiração às pinturas de Goya no Prado, em particular às Pinturas Negras, criadas num momento de profunda angústia existencial, lançando um olhar implacável sobre o tenebroso inconsciente humano. As obras de Taburet, executadas numa paleta quase sinistra, remetem para inúmeras facetas. Os seus corpos são vagamente grotescos, mas convidativos e oxímoros. Transformam-se, transitam de um estado para outro, são animalescos mas surpreendentemente delicados. Existem num espaço de tranquilidade violenta.
Também não é por acaso que o artista desenvolveu esta exposição à volta de uma linguagem visual carregada de violência – agulhas, alfinetes, facas. Elementos pontiagudos, à semelhança dos corpos das suas figuras, muitos dos quais encapuzados, encurralados entre o sagrado, o profano e o carrasco. Por um lado, esses capuzes evocam um mundo folclórico de místicos, visionários, videntes, bruxas e procissões religiosas (outra referência a Goya). Ao mesmo tempo, parecem conter uma referência muito mais negra e incontornável: a silhueta inconfundível do Ku Klux Klan. Trata-se uma reflexão sobre o poder, sobre o indizível, reforçada pela natureza quase sagrada do próprio espaço expositivo, o Pabellón de los Hexágonos, desenhado pelos arquitetos José Antonio Corrales e Ramón Vázquez Molezún em 1958, instalado entre uma capela e, com a sua estrutura peculiar, uma floresta de guarda-chuvas.

São corpos estranhos, liminares, pairando num limbo dantesco, outra referência evidente. São figuras suspensas, informes, flutuantes graças à disposição das obras, instaladas em estruturas metálicas e erguidas no ar.

Depois há o branco. Repete-se de forma obsessiva – nos dentes de algumas personagens (uma peça tem mesmo o título de Very white teeth, waxed tongue, 2025), mas de forma mais notória na repetição do padrão da toalha branca de mesa. Este motivo transtorna a calma inquietante das obras, rasgando-as com uma espécie de discórdia violenta. A toalha branca de mesa – um símbolo aristocrático de poder – entra em conflito com as figuras metamórficas de Taburet. Em entrevista com Obrist, o artista refere-se a estas figuras como “corpos negros, corpos invisíveis, sublinhando a tensão subjacente ao poder. A tensão que primeiramente senti na carta da Morte parece agora encontrar a sua explicação. É interessante notar que as Pinturas Negras constituem uma referência inequívoca – pinturas que Goya fez no final da sua vida, desiludido e amargurado com a Espanha pós-napoleónica, representando nada mais do que angústia e desespero. Será que Pol Taburet pode estar a canalizar essa mesma tensão, espelhando algo que vivenciamos no mundo de hoje?

Tal como Ben Okri conclui no poema escrito para o catálogo de artista da exposição: “É isso que a arte faz, é a alegoria do indizível, com uma boca cheia de pedras, mas que vomita”.

A exposição pode ser visitada no Pabellón de los Hexágonos, em Madrid, até dia 20 de abril.

Orsola Vannocci Bonsi é uma produtora e consultora cultural que vive em Lisboa há oito anos. No seu trabalho, promove ligações através da sua pesquisa e dos projetos que ajuda a concretizar. Com experiência como diretora comercial e galerista em várias galerias de arte portuguesas, foi também gestora de projetos e diretora artística da FEA Lisboa, fundou o coletivo curatorial Da Luz Collective e contribuiu para a programação de festivais em Itália e Portugal.

Subscreva a nossa newsletter!


Aceito a Política de Privacidade

Assine a Umbigo

4 números > €34

(portes incluídos para Portugal)