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Chão, no Centro Internacional das Artes José de Guimarães

“Pois ocorre simultaneamente na Terra um fenómeno muito importante e inevitável que é benéfico em muitos aspetos e infeliz em muitos outros: a estratificação. Estratos são Camadas, Cinturas.”[1]

A exposição coletiva Chão, patente no piso -1 do CIAJG e com curadoria de Julia Coelho, Marta Mestre e Renan Araujo, parte de um movimento curatorial, um deslocamento da experiência expositiva da sua usual horizontalidade ao nível dos olhos para um nivelamento inferior, servindo-se do chão enquanto superfície de destaque. A arquitetura do espaço e os objetos artísticos escolhidos promovem uma recolocação do olhar, uma fragmentação da hierarquia que a perceção horizontal invisivelmente pressupõe. Reconfigurando o espaço museológico habitual, propõe-se aqui um espaço “cortado, atravessado e perfurado”[2], onde a restruturação espacial materializa uma reorganização da perceção.

O desenho expositivo do Diogo Passarinho Studio + RAR.STUDIO remete imediatamente para esse movimento. Partindo do acervo de materiais de exposições anteriores do CIAJG posteriormente armazenados, estruturas constituintes de um chão renegado assumem aqui um destaque central no desenho da exposição. A manipulação espacial passa pela elevação da base estrutural negligenciada, que se apresenta com necessidade de ser vista e pensada. A arquitetura do espaço expositivo, ao invés de assumir uma identidade pré-concebida com pressupostos organizacionais, ocupa o lugar central da exploração que define a exposição. Neste sentido, obras como Claraboya (Skylight), de Gordon Matta-Clark, e Buracos, de Carmela Gross, evidenciam de forma nítida o espaço e a construção arquitetónica como passível de uma restruturação que contraria disposições pré-definidas. A própria fotografia da remodelação do Museu Nacional de Bellas Artes do Chile documenta um espaço em transformação que, ao invés de apresentar a estabilidade usual de um espaço expositivo, evidencia o seu constante movimento de remodelação.

O chão assume aqui, portanto, a sua função enquanto estrato basal onde se sedimentam as estruturas que condicionam a perceção e a relação entre sujeito e objeto e espaço. O conceito de estratificação para Deleuze e Guattari parece evidenciar precisamente esta relação, “nós nunca somos significantes ou significados. Somos estratificados.”[3] A noção de estratos e de deterritorialização e reterritorialização, tomadas emprestadas de um contexto geográfico, encontram aqui uma concretização bastante literal. Se a relação entre uma estrutura e a dinâmica por ela instituída se constrói através de sucessivas estratificações, o chão desempenha o papel de estrato inicial que permite as estruturações subsequentes. Levantar o chão equivale a desnudar para reescrever este processo.

Nas peças apresentadas de Trisha Brown, Spiral e Walking on the Wall, vemos o próprio papel do chão a ser desempenhado por diferentes elementos. Ao abandonar a verticalidade, o espaço e os corpos incorporam a tentativa de repensar o suporte e os eixos que definem o movimento. A capacidade de introduzir uma exploração material no próprio processo que axiomatiza todos os outros remeteria, prosseguindo o pensamento de Deleuze, para a “diferença-em-si”, o próprio constituinte pré-representacional. Neste sentido, não só as obras escolhidas remetem para este interesse, mas, como já referido, a sua disposição espacial promove uma alteração do olhar que precede a própria obra. Ao apresentar obras sobre o chão do museu, a própria estrutura que sistematiza a relação do espetador com o que vê torna-se assumidamente vetor de transformação dos objetos em questão. É neste sentido que a exposição adquire a sua capacidade de explorar a própria conceção de espaço, de curadoria, de desenho expositivo. De igual modo, os diagramas de Ricardo Basbaum, ocupando grandes paredes que circundam toda a exposição, esboçam relações que rejeitam a linearidade ou interpretação representacional. O diagrama, para Deleuze, ao invés de constituir uma representação por semelhança, é “o conjunto operatório das linhas e das zonas, dos traços e das manchas a-significantes e não representativos. E a atuação do diagrama, a sua função, diz Bacon, é ‘sugerir’. Ou, mais rigorosamente, é introduzir ‘possibilidades de facto’ (…)”[4] Notamos este interesse, o de utilizar o diagrama não de forma representacional, mas de forma rizomática, no modo como os trabalhos de Basbaum se constituem e dão continuidade às restantes obras que circundam. Através de uma ambiguidade e ausência de literalidade evidentemente intencionais, os seus diagramas expõem palavras, conceitos e relações que não pretendem ser descodificadas, mas de alguma forma “esteticamente assimiladas”: “Os signos não são signos de uma coisa; são signos de deterritorialização e reterritorialização, marcam um certo limiar atravessado no decurso desses movimentos”[5].

O diagrama, enquanto formulação que contém toda a exposição, sintetiza perfeitamente a proposta apresentada, sendo que toda ela é diagramática na medida em que almeja promover um pensamento consciente das estratificações, num movimento que não pretende ser capturado, referenciando neste sentido as próprias sedimentações do espaço do CIAJG. Através do chão, o levantamento da hierarquia da perceção denuncia quaisquer pressupostos dados como pré-concebidos e oferece ao pensamento e criação o poder de constantemente reescrever, restruturar e ressignificar. Como nos escreve Deleuze, “Pensar é criar. Não há outra criação, mas criar é, antes de tudo, engendrar, ‘pensar’ no pensamento.”[6] Se a criação oferece necessariamente um estrato para futuras sedimentações, é também o ato de criar que permite em qualquer momento desmontar e re-montar estas estratificações. Através da exposição, encontramos o potencial de constantemente reescrever o chão que pisamos.

A exposição pode ser visitada até dia 27 de abril.

 

 

[1] Deleuze, G. & Guattari, F. (2023) A Thousand Plateaus, p. 46. Tradução livre.

[2] Folha de sala da exposição.

[3] Deleuze, G. & Guattari, F. (2023) A Thousand Plateaus, p. 77. Tradução livre.

[4] Deleuze, G. (2011). Francis Bacon: Lógica da Sensação, p. 172.

[5] Deleuze, G. & Guattari, F. (2023) A Thousand Plateaus, p. 78. Tradução livre.

[6] Deleuze, G. (2000). Diferença e Repetição, p. 252.

Mariana Machado (2000) nasceu no Porto e estudou Cinema na Escola das Artes - Universidade Católica Portuguesa. Neste momento, frequenta o Mestrado em Artes Digitais e Sonoras, também na Escola das Artes. É artista e investigadora, interessando-se acima de tudo por manifestações que articulem a imagem em movimento num contexto entre o cinema e a arte contemporânea, assim como pelas potencialidades artísticas de novas tecnologias e suas articulações com outras materialidades.

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