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Bola de Cristal, de Miguel Ângelo Marques

O mundo das coisas inacabadas. Não que se trate de incompletude da obra, na pintura de Miguel Ângelo Marques, mas de uma busca de sentidos outros, passagens inovadoras, aberturas para uma pintura nova. uma urgência de novos paradigmas.

As pinceladas de Miguel A. Marques renovam-se a cada dia, de obra para obra. O artista desafia-se a si, desafia o outro, e a própria pintura. A mancha tênue de tinta, por vezes, deixa lastros lineares, translúcidos, que se espraiam de modo líquido, sequiosos de descoberta, de traquinice, de experimentação, de conquista do espaço da tela.

As pinceladas avizinham-se vigorosas, em gestos amplos do artista. Centra-se num devir, no sentido de Deleuze e de Guattari, de um movimento, de ruptura. Inscreve-se em novas expressões, invenções, novos modos de objetivar, de pensar, e criar imagens baseadas num reportório que o artista vai reunindo.

As telas de Miguel A. Marques, presentes na galeria Braço Perna, abrem caminho para um devir, compassado no indistinguível, no estranho, no anómalo. Rompimentos que desenlaçam as certezas e os padrões estéticos vigentes.

A pintura de Miguel A. Marques, é obra em potência. Enreda-se numa lógica de língua nova, rumo ao estranho, ao desafiador de convenções. De certo modo, como que inebriada por uma brisa leve e ondeante, a obra recupera a ideia de uma arte que outrora foi sagrada, ou predispõe para um sentimento de melancolia, de tentativa de rebuscar o que já não se recupera. Onde o espírito procura ainda um estado de pureza da alma, de encantamento, de mistério, ou magia. A magia do único, do insubstituível, do original. Dizia Walter Benjamin que “o único elemento irreproduzível na obra de arte é a sua presença, no tempo e no espaço, (…) a sua única existência no espaço onde ela se encontra, a sua originalidade”.

As pinturas de Marques contorcem as águas. Somos impelidos a voltear no espaço e a desferir movimentos helicoidais. Na verdade, o artista tira-nos o tapete. Agita-nos. E não é esse o propósito da arte?

Mas retomemos a ideia de reprodutividade: as imagens do artista remetem-nos para a iconografia popular, a banda desenhada, o kitsch, a pop art, ela própria subsidiária da reprodução em massa, do fervor capitalista. Cultura que habita em nós. O designer Dreyfus, nos tempos idos dos anos 50, do século passado, envolveu-se num projeto que compreendia munir todas as carruagens da cidade de Nova Iorque com reproduções de obras de arte. O propósito, que a arte chegasse a todas as camadas da população, e permitir que a arte fosse acessível a todos. É essa arbitrariedade intrigante, essa disponibilidade, a facilidade de transpor campos tão distintos da arte, presentes nas pinturas deste artista, que mais captam, talvez, a atenção do observador. O sagrado, o mundano, o popular, coabitam de igual modo, e de maneira dócil e harmoniosa. Descrevem uma das facetas que mais se distingue na arte desta primeira metade do século XXI: a simultaneidade das contemporaneidades, e que o artista prova habitarem tão bem nas suas obras.

A bola de cristal do artista Miguel, vestígio escultórico, fixado sobre uma das paredes, reprodutor de imagens invertidas, evoca, quiçá, A Bola de Cristal (1902), presente na pintura de John William Waterhouse, ou mais remotamente, o renascimento na obra de Salvator Mundi (1500?), de Leonardo Da Vinci, símbolo de busca de clarividência, de vidência, da sabedoria. As pinturas de Marques são a procura de verdade? Da autenticidade da pintura? O que sabemos é que a arte pode ser o reflexo da materialidade, da produção mecânica. A felicidade momentânea que provoca pode causar o sentimento de melancolia e de (in)satisfação pessoal.

Elencada ao termo do kitsch, numa dualidade entre arte maior e a vida, arte instruída e popular, conformismo e reflexão crítica.

A exposição Bola de Cristal está patente na Galeria Braço Perna, em Lisboa, até dia 14 de abril.

Carla Carbone nasceu em Lisboa, 1971. Estudou Desenho no Ar.co e Design de Equipamento na Faculdade de Belas Artes de Lisboa. Completou o Mestrado em Ensino das Artes Visuais. Escreve sobre Design desde 1999, primeiro no Semanário O Independente, depois em edições como o Anuário de Design, revista arq.a, DIF, Parq. Algumas participações em edições como a FRAME, Diário Digital, Wrongwrong, e na coleção de designers portugueses, editada pelo jornal Público. Colaborou com ilustrações para o Fanzine Flanzine e revista Gerador. (fotografia: Eurico Lino Vale)

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