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Nampula Macua Socialismo, de Manuel Santos Maia

Nampula Macua Socialismo assinala duplamente a História: marca o cinquentenário da independência de Moçambique (1975-2025) e celebra o culminar de um extenso projeto de Manuel Santos Maia, encerrando “25 anos de investigação em torno da história da sua família na relação com Moçambique (onde o artista nasceu em 1970) e as culturas africanas, em particular a cultura macua”[1].

No percurso, à entrada, deparamo-nos com um tecido flutuante. Sobre a nossa cabeça, elevam-se corpos-almas em sobrevoo, desenhos esquemáticos de navios concebidos e usados no tráfico transatlântico de escravos. A tessitura envolve-nos em vários tempos – entre as imagens digitais de telemóvel, as plantas exóticas e uma arca com motivos decorativos indo-luso-afro – ascendendo e imergindo, por fim, à altura do olhar. Suspensos no espaço expositivo, os tecidos pairam como sombras do passado, evocando as consequências do colonialismo que penetram a contemporaneidade.

No coração de Nampula Macua Socialismo está a voz da família que se humaniza e entremeia com os “regimes de dominação e os conflitos, trânsitos culturais e mestiçagens, os processos incessantes de socialização de que todos somos herdeiros”[2]. Como reverbera a memória de um espaço-tempo que persiste sob o domínio colonial? Pois, a memória afetiva é anacrónica, e, por isso, dentro dos corpos humanos, vários tempos se entrecruzam. Na exposição, essa relação encerra em si diversos elementos: a usura visível sobre as fotografias de infância em Nampula – agora digitalizadas e ampliadas, revelando não apenas o desgaste físico das imagens, mas também a ambivalência da dupla fragilidade e a força das recordações que resistem ao esquecimento, – uma carta escrita pela avó, as placas de madeira umbila (provenientes dos caixotes transportados na viagem de regresso à Europa, no contexto da descolonização e do retorno a Portugal), a cofragem/molde de uma réplica em escala reduzida da casa de infância dentro de um carrinho de mão (tradicionalmenteassociado ao transporte de materiais em contexto de construção civil), e ainda, em contraponto, a própria réplica da casa dos pequenos afectos, uma escultura em bronze numa escala que agora cabe entre as mãos.

Retomemos a carta, elemento central na exposição que o artista partilha connosco. Mergulhamos no quotidiano de Celeste – o acordar e o deitar, o cuidar da terra, o trespasse da loja de família, a costura e o crochê, a viuvez aos 49 anos, as flores que habitam um espaço híbrido, onde culturas e lugares se misturam nos interstícios do mundo (“rosas, margaridas, fetos, avenca, buganvílias, estrelícias, amores-perfeitos”[3]), um Deus para além da igreja, que persiste noutros lugares, como no amor ao neto e ao marido, ambos vivos dentro dela. Pois, é esse o segredo dos afetos. E, por fim, a cozinha, “portuguesa, africana, indiana”[4], e a língua macua que emerge e encerra o fim da carta. Em paralelo, nos interstícios, vemos as presenças laborais de Pedro, “que a ajuda a tratar da roupa [e] Amisse, na cozinha”[5], que integravam o quotidiano doméstico da casa.

A abordagem parte da intimidade que expõe, para além da palavra, as leituras subtis que se reescrevem num contínuo processo social, reflexivo e pessoal. Vestindo simbolicamente a pele de Celeste, cheirando o açafrão da índia, e escutando a música “Nifungo (A Chave da Casa)”, da banda moçambicana Eyuphuro (1990), incorporamos subtilmente os sentidos do artista, as ausências e os silêncios que se iluminam entre e para além da narrativa colonial oficial.

Nampula Macua Socialismo, de Manuel Santos Maia, está patente na Galeria Municipal Quadrum, em Lisboa, até 20 de abril.

 

 

[1] Folheto da exposição Nampula Macua Socialismo.

[2] Ibidem.

[3] Carta de Celeste Gil Marques (data não confirmada).

[4] Ibidem.

[5] Ibidem.

Margarida Alves (Lisboa, 1983). Artista, doutoranda em Belas Artes (FBAUL). Investigadora bolseira pela Universidade de Lisboa. Licenciada em Escultura (FBAUL, 2012), mestre em Arte e Ciência do Vidro (FCTUNL & FBAUL, 2015), licenciada em Engenharia Civil (FCTUNL, 2005). É artista residente no colectivo Atelier Concorde. Colabora com artistas nacionais e estrangeiros. A sua obra tem um carácter interdisciplinar e incide sobre temas associados à origem, alteridade, construções históricas, científicas e filosóficas da realidade.

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