Toda a eternidade para ser inexistente
Quando escreve, ao fim de uma carta pessoal, a frase que dá nome à mostra patente na Fidelidade Arte com curadoria de Marquise, Blaise Pascal suscita talvez o mais perolado instinto artístico — se atrelada à entropia está a passagem do tempo, não seria a arte uma tentativa de contrariar, através da solidez do conciso, esta expiração cósmica que a tudo desintegra? Segundo Michelangelo, o artista trabalha sobretudo para polir os excessos, atingindo a justa medida do que tenta entender — poderia tal concisão atingir uma presença tão delicada que acaba por camuflar a arte na miopia do mundano? Grande temperamento artístico, a melancolia anseia sobretudo a elegância da inexistência, deste transbordar ao todo que vê em cada limite a grosseria de uma separação. Irónico, portanto, pensar que tal citação já foi atribuída a muitos outros autores além de Pascal. Frases célebres de origem confusa são como os provérbios de uma consciência universal. Pois do que vale a autoria se uma obra se camufla na pulverizada realidade? Neste estágio onde nada se conserva e o original copula com o simulacro, mais importante é aprender a ver melhor. Polidas para suavizar, até quase a inexistência, os limites entre a arte e o cotidiano, as obras aqui presentes refletem sobre temas como o culto ao original e a potência do simulacro, o impacto da subtileza e os desequilíbrios da repetição. Investigam assim algumas questões no regime estético da arte: as relações entre a inventividade plástica do artista e os hábitos perceptivos do espectador, a suposta pureza da obra e a profana praticidade do objeto, a importância do espaço expositivo e a vitalidade do território cotidiano.
Primeiro, um espontâneo arranjo de sapatos em bronze nos degraus da entrada. A cínica subtileza de I haven’t arrived yet interrompe o desatento visitante, talvez descalçado antes de notar o equívoco. Se na modernidade a arte se separou de sentidos prescritos para nos exaltar num estado de livre contemplação, neste instante de dúvida Fiona Connor turva ainda mais a fronteira entre os regimes cotidiano e estético, convergindo o corriqueiro e o duradouro: a banalidade dos calçados de massa com a nobreza artística do bronze, sua utilidade ferramental com a inutilidade da arte, a leveza do movimento com a estabilidade dos monumentos. Se o bronze se destacava da realidade para se conservar numa aura de eternidade, nesta obra ele integra-se no mundo e, no artifício do anonimato, nos surpreende para nos ensinar a ver melhor. À espera dos proprietários, tais brônzeos sapatos tornam-se o símbolo do transcendente que habita o efémero — quem se descalça sinaliza a santidade do recinto: pisar suave é a base do mais sofisticado entendimento e os museus são o palco preferido da experiência estética.
Mais comprometidas ainda ao banal estão as caixas de Laurent Dupont, cuja meticulosidade oblitera a aura artística ao fabricar cópias perfeitas de objetos comuns. O disfarce é efetivo quando potencializa seu eventual impacto — a obra que anseia o banal obtém sucesso quando questiona a arbitrariedade de tais limites. Mesmo as mais delicadas obras continuam sendo artísticas, pois promovem a digestão humana do mundo. O válido simulacro é como um plano em ligeiro desalinho com o original, nas frestas que são o berço de toda mudança. Sem interesse plástico intrínseco, como o hiper-realismo do banal em Robert Gober, nem significativas manipulações extrínsecas que promovam novos olhares, como na Fonte de Duchamp, qual transformação promoveria uma cópia em tudo semelhante ao original? Há uma ironia geopolítica na curadoria das caixas, tensionando a ideia de pirataria com a da Europa como jardim. Ou seria a ausência de sentido o seu intuito, como caixas vazias que levitam à meia altura pois desprovidas de conteúdo e do peso de um propósito? Em vão nelas buscamos os minuciosos indícios de alguma oculta mensagem — é absurda a busca por respostas num universo sem sentido inerente.
Mais do que um panorama da infância de sua filha, as delicadas fotografias de Daan Van Golden são a experiência de um pai que vive o presente numa precoce nostalgia pois conhece a brevidade da primeira vida. Mas mais sólido que viver é ter vivido — a longevidade de cada memória é sustentada justo pelo esquecimento. Embora entendida como testemunho honesto, a fotografia é na realidade o veículo da sugestão: suas obras são instantes desconexos do evento original que nos suscitam a livre conjectura de seus significados. Sua série é perturbada por páginas em branco, saltos temporais, imagens sem nome, legendas solitárias ou extraviadas — também perfurada é a memória, transformando o tempo contínuo do passado numa coleção de cenas soltas que entrelaçam fato e fantasia numa sucessiva brancura que corrói a nitidez, como as lentas marés de um oceano lácteo que enfim nos conduzirá ao oblívio total. Relembrar é gesto interpretativo pois mesmo o espelho conserva mistérios sob sua impecável película. Também Insel Hombroich busca a inusitada força desta fugacidade existencial, contrastando a espontaneidade infantil com a geometria monocromática, construção mental de formas eternas que visam redimir a nossa brevidade. Mas aqui a própria geometria oscila — obra presa noutra obra, é simulacro incapaz tanto de sustentar a cronologia dos movimentos quanto de conservar a própria forma, distorcida talvez pelos tropeços da criança.
Também Dupont, em Atelier 2007-2008, le film, 2009, articula a sôfrega existência de uma geometria antes pensada impecável. Mais perfeita forma, Palladio viu no círculo o símbolo da unidade absoluta — dele, o demiurgo platónico serviu-se para impor ordem ao caos. Numa renascença ainda devota da harmonia era possível a Giotto deleitar o Papa Benedito IX ao desenhar o círculo perfeito numa instantânea quebra do punho, como nos relata Vasari. Mas agora nossa ciência sobretudo entrópica e paradoxal pode apenas contemplar a sucessiva deformação deste círculo — talvez nunca perfeito — cujas múltiplas tentativas encontram o mesmo fim: a desmaterialização na atmosfera de um real cuja rugosa vitalidade, como um escritório desarrumado, corrompe nosso desejo de clareza. Tivesse Giotto refeito o seu círculo, percebido teria não existir impecável repetição, sendo todas as coisas exorbitantes em sua singular feiura.
Como escutar a música das esferas, ária que sustenta a harmonia planetária, se desapercebida ela passa pelos ouvidos? Em Autorrádios fotografados enquanto tocava boa música, Hans-Peter Feldman encontra valor artístico no emprego de um meio impróprio para o alcance de seus objetivos, subvertendo a sua finalidade e transformando, como nos sapatos de bronze, em força uma suposta falha. Revelar tudo menos o essencial é expandir, através da ausência, o seu alcance, seduzindo o espectador antes passivo à ativa contemplação: seria possível precisar qual música ali tocava, mediante os modelos dos automóveis e estações das rádios? A inevitável falha de tal conjectura não nos impede ainda assim de nela acreditar, sobretudo realçando a própria essência do fazer artístico: falida seria a obra que tenta conservar a experiência original, pois a arte é antes a tradução subjectiva da vida do que uma inatingível honestidade objetiva.
Também de um veículo se serviu Lourdes Castro, simbolizado em sua planura infantil sobre a superfície prateada de uma monumental embalagem de chocolates. Numa interessante costura com algumas das outras obras expostas, apresenta-nos um objeto já destituído de sua utilidade, pois mero resquício do evento passado: consumido o chocolate, torna-se “tralha que já não serve nada”, como a própria artista descrevia os objetos que apropriava. É aqui, no entanto, transformado na bandeira da nostalgia que sucede o sabor do alimento, instante de fútil alegria quase tão fugaz quanto a borrada silhueta do veloz automóvel ou os brilhos do papel alumínio. De olhos sempre adiante como o piloto na estrada, também em nossos consumismos não sentimos o sabor do momento pois preocupados com o estímulo seguinte, restando apenas o invólucro como a memória de um evento nunca vivido. Não à toa Castro elegeu a sombra como grande motivo, material intangível como o próprio cotidiano atual onde tudo de palpável é volatilizado pela fantasmagoria de uma mente viciada.
Influenciada pelo minimalismo, a concisão impessoal de Gianna Surangkanjanajai de início parece promover um delicado equilíbrio, apenas para subvertê-lo sob segunda análise. Seus cinco tubos contém um aspecto industrial, mas sua composição desigual perturba seus ritmos repetitivos. Pela abertura central pode-se entrar para subverter a tradicional separação entre sujeito e objeto, enfim percebendo o instável cerne de toda a solidez: os tubos operam como níveis que revelam o declive da sala expositiva embora não precisem o ângulo de seu desajuste, dado cada um conter uma notação diferente — o subtil colapso da realidade é apenas perceptível mediante instrumentos de precisão. Seria a nossa miopia a origem de toda ordem? Um facto apenas relevante fora de nossa experiência direta ainda conserva importância? Camus escreve que Galileu fez bem ao contradizer seu heliocentrismo, pois “é-nos profundamente indiferente qual deles, o Sol ou a Terra, gira ao redor do outro.”
Ao fim da mostra, um ecrã filma as marés do atlântico. O mar quando quebra na praia é por não mais conter o seu desejo de emanar-se para fora de si na direção do continente, em ondas perturbando a sua costumeira quietude. Suas repetidas golfadas são todas únicas, pois distintas manifestações da mesma melancolia, talvez para melhor adaptar-se à variada exuberância das coisas terrenas. Como nós, que perdemos a solenidade do eixo vertical ao além, também elas não sustentam sua ascensão, dobrando-se num impulso horizontal para melhor penetrar a matéria. Mas caso tivéssemos mais tempo, talvez em sucessivos suspiros fizéssemos o contrário, transbordando à delicada inexistência onde tudo se assemelha, pois em nossa melancolia queremos encontrar-nos aonde não estamos, agora. Dissipar-se na vida é levitar sobre o sufoco dos dias e a solidão das noites, esquecendo o peso de estar vivo, mas se a vida não consegue esconder-se de si, o bem-sucedido disfarce perde-se no outro para compreender-se, enfim.
A exposição Se eu tivesse mais tempo, teria escrito uma carta mais curta pode ser visitada na Fidelidade Arte até dia 2 de maio.