Inauguração do MACAM, o novo Museu de Arte Contemporânea Armando Martins, em Lisboa
Deveria ser praxe dar a si mesmo um presente de aniversário todos os anos. Afinal, cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é. No seu último aniversário, no dia 22 de março, o colecionador Armando Martins se deu um presente dos mais extraordinários: um museu com seu nome. A festa foi aberta ao público e o bolo de aniversário foi servido para todos aqueles que marcaram presença na inauguração do Museu de Arte Contemporânea Armando Martins, em Alcântara. Quem beneficiou deste presente generoso foi a cidade de Lisboa, que agora ganhou um novo pólo cultural. E um hotel cinco estrelas.
O museu ocupa um palácio de 1701, está entre os 265 palácios de Lisboa destacados pelo patrimônio arquitetônico, e tem uma longa fachada de 110 metros de comprimento na Rua da Junqueira, uma tradicional avenida de residências aristocráticas. Adquirido por Armando Martins há quase 20 anos, a construção foi recuperada e transformada pelo atelier de arquitetura MetroUrbe, que criou uma ala totalmente nova com um painel tridimensional da ceramista Maria Ana Vasco Costa. O “museu que tem um hotel e não um hotel que tem um museu”, como explica Armando Martins, conta com 64 quartos (em uma média de 400 euros por noite), que também apresentam obras de arte originais do seu acervo. Esculturas comissionadas espalhadas pelos jardins e terraços de artistas como Cristina Ataíde e Angela Bulloch; pinturas de Rosa Carvalho no café e restaurante; e uma instalação- vídeo de Carlos Aires na Capela marcam a experiência de quem estiver passeando pelo complexo.
A coleção de 600 obras de Armando Martins começou há mais de 50 anos com algumas pinturas de artistas modernos portugueses. Foi no seu aniversário de 25 anos que se presenteou a si mesmo com uma pintura original pela primeira vez. Nascido em Penamacor, uma vila medieval na Beira Baixa, Armando Martins licenciou-se em engenharia mecânica em Lisboa. Fez fortuna no Brasil no setor cimenteiro e mineiro, e nos anos 1990, fundou o Grupo Fibeira, com negócios em setores de imobiliário, hotelaria e serviços. Depois esteve à frente do empreendimento Atrium Saldanha.
Logo à esquerda da entrada do museu e recepção do hotel, uma galeria dedicada às pinturas de artistas como Sarah Affonso, Nadir Afonso, José de Guimarães, Amadeo de Souza-Cardoso e Almada Negreiros faz um resumo desta paixão. As outras três galerias do MACAM expõem obras de artistas contemporâneos nacionais e internacionais, que Armando Martins começou a colecionar no final dos anos 1990. “Eu já pensava em criar um museu”, conta ele, que hoje expõe (apenas) um terço da sua coleção ao público. “Algumas peças eu passei mais de 20 anos sem ver. Arte é feita para ser vista e compartilhada!”, disse.
Nessas horas, se percebe o poderoso trabalho da curadoria: Adelaide Ginga e Carolina Quintela são responsáveis por pesquisar cada uma das obras da coleção, criar recortes e trazê-las a público com uma narrativa, contexto e propósito. “Começamos há cinco anos”, conta a curadora Carolina Quintela. “O que fizemos primeiramente foi ver as obras, seu estado de conservação e fazer um levantamento. Nós fotografamos, trabalhamos nas designações técnicas das peças, fomos à procura de certificado de autenticidade. Portanto, foi um levantamento muito profundo. Depois, o segundo passo foi estudar a coleção, perceber que obras são essas, escrever textos sobre elas. A partir daí pudemos escolher, de forma muito intuitiva, o que apresentar primeiro no museu”.
As duas curadoras decidiram montar duas exposições temáticas, dedicadas ao antropoceno e à guerra. No seio uma coleção gigantesca e de grandes nomes, porém composta de obras nem tão fortes nem tão representativas dos artistas, são as narrativas trazidas pelas curadoras que conferem mais coerência e consistência ao que é apresentado. “Apercebemo-nos que há muitas obras que têm, de facto, uma força e um impacto e que podíamos posicioná-las com o mundo em que vivemos e que atravessamos”, explica Carolina. Tarefa extremamente necessária. Afinal, um museu que presta serviço à sociedade não apenas apresenta obras, mas fomenta pesquisa, levanta questionamentos, propõe pensamento crítico e atua no eixo da educação e mediação.
Guerra: Realidade, Mito e Ficção abre com uma forte escultura de concreto e chapa de metal de Cristina Iglesias e com a reprodução da primeira bomba atômica da história, de João Louro; depois passa pelas esculturas e fotografias de Melik Ohanian, criadas a partir de uma pesquisa de imagens de mulheres que participaram no processo de feitura das bombas da Primeira Guerra Mundial; e culmina na impactante obra de Berlinde de Bruyckere – dois cavalos com tamanho e pele natural, que aparecem feridos, baleados, e presos a um armário. “De facto, vivemos ao mesmo tempo uma extrema fragilidade em disputas antigas, e outras recentes. Parece estar tudo montado em chamas, não é? A exposição pergunta porque estamos constantemente envolvidos nestes conflitos. E depois está ligada a outros temas que podem sustentar ou explicar esses conflitos, por exemplo, a banalidade do mal, esse conceito de que estamos constantemente expostos a imagens que acabam por perder importância. Todos estes discursos, não só ficcionais como mitológicos, que muitas vezes reforçam e que continuam a manipular e até direcionar a opinião pública.”
Carolina Quintela também contou orgulhosa sobre o projeto MurMur, que apresenta obras de artistas emergentes no saguão de pé direito alto do prédio novo. “Convidamos artistas a desenvolverem um projecto que ocupa duas paredes, uma de nove metros e outra de seis metros de altura, e que ainda não tiveram a oportunidade de expor em um espaço institucional. Acho mesmo muito interessante a possibilidade de experimentação”. A artista francesa com ascendência marroquina Marion Mounic inaugura o projeto com Harem, uma tapeçaria e uma pintura.
Após o passeio, vale experimentar os quitutes no delicioso MACAM café – que no dia da inauguração foi muitíssimo bem-recebido pelos visitantes em clima de festa – ou fazer uma refeição no restaurante Contemporâneo. A Capela irá sediar a programação noturna: uma bonita capela que foi totalmente restaurada, e dessacralizada, para receber um bar com programação de música e performance para além dos horários de funcionamento das exposições. O hotel, criado com o objetivo de sustentar o museu, será inaugurado na Páscoa. Que o frenesi da abertura perdure: vida longa ao MACAM.