Caipiras: das derrubadas à saudade, na Pinacoteca de São Paulo
Em São Paulo, a Pinacoteca estadual apresenta-se como uma das principais instituições culturais do Brasil. Fundada em 1905, seu prédio foi projetado pelo arquiteto-engenheiro paulistano Ramos de Azevedo e pelo ítalo-brasileiro Domiziano Rossi. Na década de 1990, o prédio neoclássico ganhou uma significativa remodelagem, assinada pelo arquiteto modernista Paulo Mendes da Rocha, que também foi responsável pelos projetos presentes no Museu dos Coches e na Casa Quelhas, ambos em Lisboa.
A instituição brasileira, dirigida desde 2017 pelo experiente curador alemão Jochen Volz, apresenta, até dia 13 de abril de 2025, a exposição Caipiras: das derrubadas à saudade, onde é abordada a figura do “caipira” que, em Portugal, se aproxima da figura do “saloio” – o camponês, o indivíduo rústico.
Esta figura, sertaneja, é típica da região que o antropólogo e sociólogo Darcy Ribeiro chama de “paulistânea caipira”, que tem como ethos social a vida rural das regiões brasileiras do estado de São Paulo, uma grande parte de Minas Gerais e do Mato Grosso, Goiás, o Norte do Paraná e partes do Rio de Janeiro e Espírito Santo.
O personagem em questão, presente no imaginário ilustrado na exposição, nasce da miscigenação do homem português com a mulher indígena. Figura que também é conhecida como “caboclo”, “roceiro”, “matuto” ou “sem trato na cidade”. Caipira deriva da palavra do tupi-guarani “caipiâbiguâra”. “Cai” significa “gesto de macaco ocultando o rosto”. “Capipiara” significa “o que é do mato”. “Capiã”, “de dentro do mato”. “Capiau”, “caapiária” e “caapi”: todas estas palavras remetem a ideia de “lavrador”.
No passado, os estereótipos escolhidos para ilustrar o imaginário da figura do sertanejo de outras regiões eram mais combativos e vigorosos: por exemplo, no Brasil, foram idealizados gaudérios a trotar em seus cavalos ao sul do país e cangaceiros nordestinos com seus rifles; nos Estados Unidos, foi construída a imagem de cowboys em confrontos com suas pistolas no faroeste; no México, enérgicos mariachis cantores e revolucionários. Ao contrário, a representação do imaginário caipira é pacata, não combativa, passiva, a dedilhar sua guitarra ou a manusear seu tabaco.
Talvez por isso, inconscientemente ou não, o MASP, Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, ao adquirir obras do muralista mexicano Diego Rivera – artista amplamente reconhecido pela força política e revolucionária dos personagens que pintou -, optou por incorporar ao seu acervo, justamente, dois quadros em que o pintor não ilustra batalhas ou lutas sociais, mas a rotina do trabalho no campo: as obras do acervo do MASP Os semeadores (1947) e O carregador (1944) sugerem um recorte da obra do artista mexicano que, contextualizadas em solo paulista, fazem com que seus personagens pareçam caipiras.
Coube ao pintor academicista e realista da segunda metade do século XIX, José Ferraz de Almeida Júnior, natural da cidade paulista de Itu, edificar esta representação do caipira como imaginário escolhido para personificar o espírito da paulistânea caipira.
Almeida Júnior estudou na Escola Imperial de Belas Artes – academia francófila que nasceu quando Dom João VI acolheu a famosa Missão Francesa no Rio de Janeiro – e, posteriormente, caiu nas graças de D. Pedro II do Brasil, que financiou sua ida para Paris, onde foi aluno de Alexandre Cabanel na École Superieure de Beaux-arts.
É com duas pinturas deste artista – Caipira picando fumo (1893) e Amolação interrompida (1894) – e mais um conjunto de outras 18 pinturas vindas do Museu do Ipiranga, que se originou o acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo, em 1905.
Diante deste contexto, percebe-se que a Pinacoteca, por mais de um século, trabalha ininterruptamente com os valores da figura do caipira com algum protagonismo narrativo. Durante o século XX, esta figura camponesa foi depreciada pelo escritor Monteiro Lobato com o seu personagem Jeca Tatu e suas crônicas no livro Urupês (1918) e, ao mesmo tempo, valorizada por apresentadores de televisão como Rolando Boldrin, em seu programa Sr. Brasil (2007-2022) e Inezita Barroso em Viola, minha viola (2007-2015). Nos cinemas, o diretor e ator Amácio Mazzaropi divulgou a ideia do caipira por todo o território brasileiro. No contexto expositivo, o Museu do Ipiranga – outro centro cultural com notórias obras de Almeida Júnior e outros academicistas e realistas brasileiros – foi reaberto apenas em 2022, após passar nove anos fechado.
Por sua vez, a Pinacoteca seguiu a brincar com os objetos do seu acervo e a constelar suas representações de caipiras em diferentes órbitas ao decorrer de várias exposições.
Por exemplo, em 2007, propôs a exposição Almeida Júnior, criador de imaginários. Dezassete anos depois, em 2024, mudou sua perspectiva narrativa e, em vez de falar em “criação de imaginários”, adotou um discurso de “metáforas sociais”. Nesta ocasião, colocou a obra Caipira picando fumo (1893) diante do Museu do Homem do Nordeste (2013), de Jonathas Andrade.
Não foi a primeira vez que Almeida Júnior dialogou com um imaginário nordestino – alguns anos antes, sua obra ficou diante da Baiana quitandeira (1931), de Guiomar Fagundes. Também não foi a primeira vez que o caipira dialogou com a contemporaneidade, pois no ano de 2000, sob a direção de Emanoel Araújo, a Pinacoteca realizou a exposição Almeida Júnior, um artista revisitado, repleta de releituras e diálogos com artistas contemporâneos e contextualizada com textos de Aracy Amaral e Maria Cecília França Lourenço.
Desta vez, em Caipiras: das derrubadas à saudade, com curadoria de Yuri Quevedo, é possível destacar duas grandes virtudes da narrativa proposta.
A primeira virtude é a técnica. Logo nas primeiras páginas do catálogo da exposição, vemos imagens de exames físico-químicos, reflectografia de infravermelho e fotografia da fluorescência induzida por luz ultravioleta feitos pela primeira vez no quadro Amolação interrompida. Estes dados técnicos fomentaram o discurso curatorial que aponta para questões como o uso de gesso nas pinturas de Almeida Júnior e, curiosamente, a presença de metais que sugerem a presença de azul da Prússia em sua obra (ao retirar a moldura de Amolação interrompida, a equipe de restauro visualizou tais azuis na borda protegida pelo lenho).
Particularmente, passei algumas horas a debater com o artista, professor e restaurador Manoel Canada, em seu ateliê no bairro paulistano da Aclimação, a mudança na pincelada de Almeida Júnior durante os anos: o pintor saiu do Brasil como um academicista, estudou em França com o pintor neoclássico Alexandre Cabanel, por qual motivo que a sua pincelada voltou ao Brasil tão mais curta e rala? O que Almeida Júnior viu em França que nós não vimos?
A segunda grande virtude da narrativa curatorial da exposição reside na não exclusividade de questões relacionadas à representação de um personagem. A exposição também aborda a perspectiva da relação do homem com a natureza. Aponta uma destruição da terra e dos rios que começou há pouco mais de cinco séculos. Momento que é ilustrado pela pintura Bandeirante e Índia (1895), de Henrique Bernardelli, em que o homem português se encontra com a mulher indígena: estes que serão os pais do caipira.
Esta sala, onde encontra-se a obra Bandeirante e Índia, é um dos três núcleos da exposição, batizado de “Derrubadores, desbravadores e degredados”. Possui uma forte vocação para mostrar o contexto que carrega naturalmente um desmatamento anunciado. Conta com obras poderosas de nomes como Félix-Marie-Émile Taunay, Benedito Calixto e grandes obras de Almeida Júnior, como Estudo da Partida da Monção (1987) e o Estudo do Caipiras negaceando” (1888), que representou o Brasil da Exposição Universal de 1889, em Paris, onde foi apresentada a Torre Eiffel.
Neste núcleo, o modo como foi exposta a obra Derrubador brasileiro (1879), produzida em França, ficou aquém do rigor histórico, uma vez que que a obra de Almeida Júnior não foi bem-recebida pelo público brasileiro do final do século XIX. Um personagem de pele mais escura do que os caipiras brancos que consagraram o pintor também é detentor de uma certa sensualidade. O modernista Oswald de Andrade viria a dizer, algumas décadas depois de sua criação, que esta pintura, com sua vegetação, seus coqueiros, seria a grande precursora de uma estética genuinamente brasileira. A não aceitação desta obra em terras brasileiras na época e este apontamento feito por Oswald possuem força para o levantamento de inúmeras questões. Então, por qual motivo ela se encontra tão escondida na exposição na Pinacoteca? No fundo da sala onde o olhar de quem entra pela porta não alcança. Assim como no final do século XIX, é absolutamente impossível esconder uma obra desta magnitude, mas ela segue sem ser colocada em destaque.
Tal destaque não faltou a Caipira picando fumo em todas as suas três versões expostas no núcleo curatorial “A construção dos caipiras”. Surge aqui uma perplexidade, quando se coloca ao lado dos caipiras brancos – consagrados como a personificação do imaginário do estruturalmente racista estado de São Paulo -, imagens de caipiras negros pintados por artistas como Arthur Timóteo da Costa e Benedito José Tobias.
O terceiro núcleo da exposição, “Os tempos mudam: a cena e a saudade” é o mais inspirado a ser apresentado na Pinacoteca. A presença do quadro de Antônio Parreiras Fim do romance (1912) mostra um homem assassinado que facilmente podemos relacionar com a história de Almeida Júnior. Este morreu por um crime passional, foi assassinado por ciúmes. Imagino como sua obra A noiva (1886), retrato da mulher amada pelo pintor, ecoaria bem ao lado da obra de Parreiras. Diante da ausência desta obra na exposição, de alguma forma a pintura Saudade (1899) ocupa esta função de eco na sala.
São inúmeros os diálogos que podemos pensar a partir da obra de Almeida Júnior. Sua Cozinha caipira, por exemplo, poderia dialogar facilmente com a fotografia de yanomamis a cozinhar feita por Claudia Andujar (Xirixana Xaxanapi thëri desmancha bananas cozidas na panela de alumínio, 1974). Ou sua Nhá chica (1825), com certeza reverbera com imagens de mulheres trabalhadoras que lutam pelo direito à terra. E, claro, seu O violeiro (1899) ficaria maravilhoso ao lado da pintura de José Malhoa presente no Museu do Fado em Lisboa, O fado (1910). Como não foi possível trazer esta obra até ao Brasil, a presença de um desenho com a mesma composição de O fado, ficou muito bem ao lado do “violeiro” na parede da Pinacoteca!
É curioso pensar que o quadro O violeiro pertenceu ao acervo da modernista Tarsila do Amaral, que ganhou uma exposição individual no Museu de Luxemburgo, entre outubro de 2024 e fevereiro de 2025. No catálogo da exposição de Tarsila, foi escolhido um tom de azul que, no Brasil, é popularmente chamado de “azul caipira”. Foi bonito perceber que para a exposição na Pinacoteca foi escolhido pintar as paredes justamente com esse tom de azul. O caipira.
Até 13 de abril, na Pinacoteca de São Paulo.