Madrid: um breve itinerário a partir da ARCO
Entre tempos
Wametisé: lugares nomeados. Segundo a cosmogonia de alguns povos do Alto Rio Negro, no Amazonas, uma grande serpente, grávida de humanidade, viajava, sinuosa, enquanto regurgitava cada pessoa no seu território de eleição. Fora do seu ventre, tendo encontrado a terra, cada indivíduo proferia, então, o seu nome e o nome do lugar onde viveria. Criar o mundo é, portanto, um ato de nomear. É isto o que Wametisé: Ideias para um Amazofuturismo, projeto central da passada 44.ª ARCOmadrid, pretende conjurar: a conceção de um mundo futuro possível — não apenas para a Amazónia (que, nos últimos 50 anos, já perdeu uma área florestal maior que a extensão da França), mas inerentemente amazónico, absorvido das suas dinâmicas comunitárias e práticas de renovação entre corpos humanos, vegetais, físicos e metafísicos.
Com curadoria de Denilson Baniwa, María Wills e o coletivo Institute for Postnatural Studies, a mostra reúne mais de duas dezenas de artistas, oriundos de oito países da América Latina, cujos trabalhos deixam entrever a pluralidade irredutível da arte contemporânea indígena — expressão esta que, embora produtiva, não deixou de suscitar dúvidas sobre a possibilidade de abreviação num movimento comum e a sua caracterização como marca de uma “contemporaneidade”. Aliás, é a própria problematização desta relação temporal — também abordada, brevemente, numa das conversas do programa de encontros em torno da exposição —,até mais do que a afinidade estética entre as obras no espaço, que robustece a proposta curatorial: atravessadas pelo filtro de um (difícil) sentido de porvir, as criações em Wametisé recobram um tom vanguardista, quase profético, ao passo que anunciam um tempo já em curso e, assim, tão imaginável quanto factível. “[S]e há futuro a ser cogitado”, escreve Ailton Krenak, “esse futuro é ancestral, porque já estava aqui”[1]. Um amazofuturismo, portanto, está atento a esses esforços de resistência que, na verdade, nunca cessaram de existir, de criar nomes e sonhar mundos. Enquanto núcleo da mais tradicional feira de arte do Sul europeu, também termómetro de uma certa contemporaneidade nas artes visuais — da qual participam, todos os anos, cerca de 200 galerias e quase 100 mil visitantes, premiando talentos, galerias e coleções —, a mostra insiste novos caminhos, arranjos de poder e vocabulários para as imagens em produção e circulação, hoje.
Entre escutas
Como habitual, o caldeirão das tendências, pesquisas e trocas aferventadas pela ARCO transborda para os demais espaços de cultura de Madrid. Assim, outros amazofuturismos também se fizeram presentes e prementes no Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía — com performance de Uýra Sodoma —, na Casa de América — com uma exposição da Coleção Juan Carlos Maldonado, que tece aproximações estéticas entre peças Ye’kwana e a abstração geométrica moderna e contemporânea —, no Museo Lázaro Galdiano — com uma mostra sobre a historicidade do território amazónico a partir do maior acervo privado de arte contemporânea da Amazónia peruana, a Coleção Hochschild Correa —, na Embaixada da Colômbia — com um estudo sobre as perspetivas sociais, políticas, sagradas e medicinais da folha de coca —, no Real Jardín Botánico — com a instalação Color Amazonía por Susana Mejía — e, ainda, no Centrocentro e no Archivo Arkhé, duas mostras curadas por Halim Badawi que colocam em diálogo diferentes posições histórico-artísticas sobre as memórias e os legados indígenas na América Latina e no mundo.
Na Casa Encendida, também com curadoria de María Wills, Bárbara Santos apresenta Oro tapado, uma continuação do seu trabalho em torno de conhecimentos tradicionais como tecnologias vivas. A procura pelo ouro, aqui, serve de mote e convite para nos precipitarmos solo adentro, tentando relações sensíveis com as existências minerais que, ainda que não possamos enxergar, fazem a Terra girar. Parte de uma programação que se dedica ao Escutar como primeiro “verbo em chamas” a ser conjugado pela instituição, ao longo de todo o ano de 2025, Oro Tapado sintoniza-nos com as vozes do subterrâneo e do invisível, preconizando a conversão dos nossos corpos em grandes orelhas, sensores e transmissores de vibrações que viajam, a cada instante, entre seres humanos e mais-que-humanos. Mas se a exposição de Santos logra criar um espaço mais ou menos imersivo para a perceção desta ecologia sonora, é pelo (apenas aparente) silêncio de uma floresta, ambiente no qual lemos uma carta escrita por um papagaio-de-porto-rico (Amazona vittata), que a nossa habilidade de escuta é ainda mais plenamente convocada e posta à prova.
A instalação El Gran Silencio (2024), da dupla Allora & Calzadilla em colaboração com Ted Chiang, é, sem dúvida, uma destas obras que instauram uma epifania qualquer, cruzando palavras — especulativamente traduzidas —, estórias e coincidências numa fábula científica (este género tão caro à filósofa Vinciane Despret, outra grande especuladora e tradutora de pássaros, aranhas ou polvos) que expande e avoluma, imensamente, o nosso mundo e a nossa linguagem. Estamos nos terrenos que circundam o Observatório de Arecibo, aquele que foi um dos maiores projetos globais em radioastronomia, ciência atmosférica e astronomia de radar. À sua volta, a última população selvagem de papagaios porto-riquenhos, inteligências em perigo crítico de extinção, esperava suscitar a mesma curiosidade nos cientistas. Mais ou menos no mesmo ano em que uma tentativa de comunicação com a vida extraterrestre em potencial foi transmitida do radiotelescópio para um aglomerado a cerca de 25.000 anos-luz de distância, restavam apenas 13 pássaros da espécie no mundo. Se a voz é este dispositivo performativo do chamamento, que excede e atravessa tantos seres (menos um predicado para a nossa pequena coleção de excecionalismos), aguçar os ouvidos é condição indispensável para não acabarmos numa floresta (realmente) silenciosa.
Entre intimidades
Os ouvidos, sim; mas também o tato, esse grande sentido que abarca, de facto, o tangível e o intangível, tudo aquilo capaz de nos afetar. No mundo físico — já dizia Aristóteles, algures por volta do ano 350 a.c. —, o contacto é condição necessária a todos os tipos de movimento (kinēsis). Logo, é preciso que corpos com extremidades se possam encontrar uns com os outros: o fogo aquece a madeira, e a madeira torna-se, então, ardente; a bola de bilhar branca bate na bola oito, que se move à vez; o açúcar é adicionado à água, e a água passa a saber doce; uma pessoa pinta um quadro e, do outro lado da imagem, sentimos a sua intimidade. Não à toa, no seu pequeno tratado On Sense and Sensibilia, o filósofo grego sugere que o órgão primordial do toque é o coração (I.2) — e é este que Manuel Solano, de peitos abertos, nos oferece em Egogénesis. Na Travesia Cuatro — galeria que representa, inclusive, o espanhol Álvaro Urbano, vencedor do oitavo Prémio Catalina d’Anglade nesta ARCOmadrid —, a artista transfeminina mexicana apresenta uma série de autorretratos nos quais emergem diferentes experiências de identidade. Curiosamente, até, em meio aos seus registos biográficos, surge a figura de um pássaro, assim como, noutra tela, o reflexo do seu corpo nu pintado invade o exterior verde da galeria através do vidro. Solano é muitas — tem asas e raízes — e tateia essa multiplicidade com a delicadeza e a precisão das suas mãos e dedos: aos 26 anos, perdeu a visão devido a negligências médicas no tratamento do VIH, mas não perdeu a vocação para a figuração, nem, certamente, para nos desafiar o olhar.
No Museo del Prado, é também esta capacidade de comoção pela imagem que está em jogo em Sigmar Polke. Afinidades desveladas — exposição exemplar de uma minuciosa, rigorosa e ensaística prática curatorial por Gloria Moure. Ensaística, por excelência, porque concisa e completa justamente na sua forma parcial, recortada e breve — exata enquanto lúdica, fechada enquanto expansiva; nenhuma ponta solta e, ainda assim, incontáveis caminhos abertos. Polke e Goya, frente a frente, num primeiro diálogo manifestamente anacrónico e, nem por isso, menos potente: ressoam as caveiras, os ossos, a mirada penetrante, as nuvens, as Velhas, o Colosso, Saturno. O medo e a morte que pairam, fantasmáticos, e se acumulam nas superfícies inscritas pelo alemão e pelo espanhol — temas que, sabemos, atravessam tempos e intimidades.
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Acerca do futuro, poderia, ainda, mencionar a importante iniciativa do espaço La Papeleria, com uma exposição coletiva em colaboração com o Palestine Museum of Natural History; acerca da escuta, Tarek Atoui sobre as formas musicais da hospitalidade, no TBA21 Thyssen-Bornemisza Art Contemporary; ou acerca da intimidade, a mostra Proust y las Artes, também no Museo Nacional Thyssen-Bornemisza. Terão de permanecer à descoberta da pessoa leitora e à sorte de quem passar por Madrid com os ouvidos atentos.
A Umbigo viajou à capital espanhola para a ARCOmadrid, na qual esteve presente na área das revistas e publicações de arte pelo oitavo ano consecutivo.
[1] Krenak, Ailton. (2022). Futuro ancestral. Companhia das Letras, p. 8.