Ritmos y Poemas, de Lou Vives
A voz, no seu sentido mais imediato, é o som produzido pelas cordas vocais, o meio através do qual comunicamos e nos fazemos ouvir. Para lá do som, a voz é um instrumento de expressão subjetiva que se transforma ao longo do tempo. Seja nas palavras faladas, no canto ou no silêncio, a voz revela-se um forte vestígio de quem fomos, somos, e do que podemos vir a ser.
A primeira exposição individual de Lou Vives, Ritmos y Poemas, inscreve-se num campo onde a memória e a identidade são suportadas pela voz. Seja na sua materialização sonora, na palavra escrita ou na inscrição gráfica, a expressão vocal é meio de negociação entre o interior e o exterior, o eu e o mundo.
É no ritmo da percussão e da palavra que se ativa a mostra. Em Ritmos y Poemas (2024), uma performance inaugural, assistimos à repetição e à improvisação do gesto e da voz. Desta performance nasce uma instalação onde permanecem os objetos que lhe fizeram parte: bateria, tapetes e materiais de isolamento acústico. O corpo ausente de Vives não só se perpetua pelo espaço da Kunsthalle Lissabon através do gesto e dos elementos que deixou para trás, como também pela poesia que ecoa pela galeria através da peça sonora I was at a moment when everything was new (2025).
Este rasto de impermanência é capturado num mural executado na maior parede da galeria. Em Três tristes triggers/Optimism Of The Will (2025) a ausência de um esboço prévio reflete a própria natureza da memória: fluida e imprevisível. As capelas gêmeas de San Antonio de la Florida, em Madrid — que possuem frescos de Goya—, ancoram a composição na qual vemos objetos de diferentes contextos. Na bola de futebol, na consola, nas ferramentas ou num tubo de tinta, encontramos um campo de ressonâncias que misturam o pessoal e o coletivo. A escolha de um trava-línguas para título da obra sugere uma relação direta com o som enquanto matéria plástica. A repetição do “tr” na palavra lida cria um efeito rítmico que se aproxima da cadência da percussão, um elemento central na exposição. Além disto, é evocada a noção de gatilho emocional com a palavra “trigger”, frequentemente associada ao trauma.
A série Drummer #1-10 (2024), um conjunto de dez litografias, evoca e reinterpreta a icónica revista gay nascida nos anos 1970. “Drummer” foi um importante espaço de afirmação e celebração da cultura leather gay. Vives evoca esse passado de resistência e liberdade, mas também de exclusão e marginalização, reinterpretando-o com diversos símbolos. Numa das litografias vemos a casa Prospect Cottage de Derek Jarman, artista, cineasta e ativista, cuja obra é profundamente marcada pela sua identidade queer. Noutras, são usadas cadeiras gaming, ferramentas de construção, Hot Wheels, ou screenshots do arquivo pessoal do artista. Com esta justaposição de elementos, Vives cria um diálogo entre o passado e o presente, entre a cultura underground dos anos 70 e a cultura digital contemporânea. A série explora, através da colagem e repetição, a ideia de arquivo, memória coletiva, e a forma como o desejo e a identidade se constroem através de referências culturais.
A dimensão arqueológica do seu trabalho é também revelada na obra A minha voz antiga (2017), uma cassete cujo verso tem escritas as palavras que lhe dão título. Enquanto objeto analógico, a cassete guarda uma gravação acidental da voz do artista quando adolescente. Ao transportar este documento pessoal para o espaço expositivo, Vives ativa questões sobre tempo e transformação. A cassete funciona como rasto de um eu que já não existe da mesma forma, que permanece em movimento.
Ao desconstruir os limites entre arquivo e performance, ensaio e improviso, Lou Vives propõe uma visão do tempo e da identidade que se inscreve no movimento — um território instável e inacabado, onde o desejo, a música e a linguagem se tornam forças transformadoras. Ritmos y Poemas assume-se assim como uma experiência que resiste à imutabilidade e que encontra na efemeridade um gesto político: uma reivindicação da fluidez como forma de existência.
A exposição está patente na Kunsthalle Lissabon até 5 de abril de 2025.